quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Com São Francisco preparando-nos para o Natal


NATAL DO SENHOR

(MISSA DA NOITE)

Pistas para uma Homilia franciscana
Liturgia da Palavra: Is 9, 1-6; Sl 95 (96), 1-2a.2b-3.11-12.13 (R. Lc 2,11); Tt 2, 11-14; Lc 2, 1-14
Tema: Um Menino nos foi dado
Mensagem: Acolhendo o Deus Menino também nós temos a graça de tornar-nos meninos de Deus.
Imagem: Menino Jesus na manjedoura.
Rito: Beijo do Menino Jesus


Introdução: a Festa das festas
Toda vez que nasce uma criança uma nova luz se acende na mente e uma grande alegria nasce no coração dos pais, irmãos, vizinhos e (por que não?) de toda a humanidade. Não é só mais alguém que vem ao mundo. Todos nascem de novo.
Hoje celebramos de novo o Nascimento do nosso Deus feito Menino nascido em Belém. Por isso o salmista convida todos os povos à uma exultação festiva universal, católica, isto é, cósmica e ecumênica: “Alegrem-se os céus, exulte a terra, ressoe o mar e tudo o que ele contém, exultem os campos e quanto neles existe, alegrem-se as árvores das florestas [...] “Anunciai dia a dia a sua salvação, publicai entre as nações a sua glória, em todos os povos as suas maravilhas”.
É a Boa Nova, o “Euangelion”, a alegre Mensagem que os mensageiros celestes, anunciam aos pastores: “Não temais, porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é Cristo Senhor”.
Para uma bela e frutuosa celebração desse mistério sigamos o exemplo de São Francisco que “Celebrava com inefável alegria, mais que todas as outras solenidades, a Natividade do Menino Jesus, afirmando que era a festa das festas, em que Deus, feito um menino pobrezinho, dependeu de peitos humanos” (2C n. 199).
  1. Um filho nos foi doado
O sublime e admirável do Natal, porém, não é apenas o nascimento de Deus, mas o nascimento de Deus no coração, na mente, isto é, no humano mais humano de todo homem não importando as condições (i)morais, (a)éticas, espirituais, céticas ou ateias de quem quer que seja. A única exigência é que sejamos homens de boa vontade, isto é, que nos deixemos mover por aquela centelha, a mais profunda do coração humano: o bem querer. Por isso diz o anjo: Não tenhais medo, eu vos anuncio uma grande alegria que é para todo o povo. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor (v. 11) . Por isso, essa Noite é uma Noite feliz! Noite de Paz! De júbilo! Reconciliação e Misericórdia.
O Natal, portanto, diz respeito a todos os homens e a toda a criação (Cfe. “Laudato Si” do Papa Francisco). Ou seja, a partir dessa iniciativa de Deus, o homem e mesmo as criaturas todas são criadas de novo, agora, a partir do alto, do espírito, da graça misericordiosa de Deus. Pois, Ele se entregou por nós para nos resgatar de toda maldade e purificar para si um povo que lhe pertença e que se dedique a praticar o bem (Tt 2, 11).
Há algo de inaudito nesse Dia: a criação toda, os homens todos, a exemplo de Maria, engravidam de Deus. Na nova humanidade, que é engendrada hoje, o Verbo prolonga sem fim o ato de seu nascimento e, pela força de sua imersão no seio do mundo [...] toda matéria agora é encarnada... (Teilhard de Chardin). A partir desse mistério dá-se uma revolução universal: Deus não é mais só Deus, mas Deus-humanado e o homem não é mais só homem, mas homem divinizado. Deus se faz Menino para que o homem se torne menino-Deus.
O primogênito de Maria (Lc 2, 7) torna-se também o primogênito de todas as criaturas (Cl 1, 15), isto é, o sentido e o fundamento do ser de toda a criação. Ele é, como dizia o teólogo franciscano João Duns Scotus, o “summum opus Dei” (a suma obra de Deus). Ora, o responsável pela suma obra, pela obra perfeita de Deus, dizia ele, não pode ser o pecado, que é um defeito da criatura, mas só pode ser o amor absolutamente livre e gratuito, superabundante, sem porque nem para quê, de Deus: o mistério da “Cháris”: da graça, quer dizer, do favor livre, imerecido e indevido, da benevolência, da gratuidade e da graciosidade do Deus Amor.
Poderíamos também dizer: o mistério da misericórdia (Tito 3, 5), isto é, do amor visceral, entranhado, de Deus pelos humanos. Por isso, hoje ouvimos a leitura da Epístola de Paulo a Tito, que diz: “Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens” (2, 11). Desde o advento de Jesus Cristo na carne de nossa humanidade, toda a história humana aparece envolvida na história da salvação divina. A sua obra de salvação é obra do amor gratuito e gracioso de Deus pelos homens, fruto da benevolência (cháris) do Pai. Jesus Cristo, o Ungido pelo Espírito Santo, é o “Euangelion”, a Boa Notícia desta benevolência, o rosto da misericórdia (MV), do amor entranhado, visceral, terno e apaixonado, de Deus Pai pelos humanos.
O evangelista diz não apenas que um menino nasceu para nós, mas, também, que um filho nos foi dado. Isso significa que de pouco me adiantaria celebrar o Natal se eu não permitisse que a geração do Menino Deus (o Filho de Deus) em mim fosse se consumando dia após dia.
  1. Um Menino nascido em Belém e deitado numa manjedoura
No Menino de Belém se manifesta a humanidade, quer dizer, a humildade de Deus, que rege, servindo a tudo e a todos. O Deus humanado, o Menino de Belém, assume a nossa carne, e oferece a si mesmo, sim, seu corpo, como pão. Não é à toa que “Belém” quer dizer “casa do pão”. Por isso, ele está reclinado numa manjedoura. Cada homem que o acolhe – que recebe o seu corpo oferecido como pão – se torna “Belém” (casa do pão), dizia Beda, o Venerável. Ele, em sua simplicidade, humildade e pobreza, não aparece revestido de púrpura, mas de panos pobres, para que nós sejamos investidos e revestidos da dignidade de filhos de Deus. Dizia Mestre Eckhart que, se um rei se casa com uma plebeia, toda a sua família se torna nobre. Nós, isto é, toda a família humana, fomos enobrecidos e enriquecidos pela pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Maria enfaixa o seu filho. Ele se deixa “enfaixar”, “atar”, por amor de nós, para nos trazer a verdadeira liberdade. Ele aparece enfaixado como um morto, isto é, ele assumiu a nossa mortalidade, para nos conceder a imortalidade. Maria reclina o seu filho numa manjedoura, numa cocheira, onde se alimentam o burro e o boi. Ele, vindo “inaparente”, no silêncio e na humildade, quase não é reconhecido pelos homens. O boi e o burro reconhecem o seu dono, mas os homens custam a reconhecer o seu Senhor. É que Ele aparece no brilho e no esplendor da pobreza, na finitude e fragilidade de nossa condição humana. Em vez de nascer num berço de ouro e de poder, o Rei do céu e da terra, nasce numa manjedoura, num presépio, dependendo de peitos humanos.
São Francisco ficou enternecido e apaixonado pelo mistério da Pobreza de nosso Deus. O livreto intitulado “Sacrum Commercium” contempla a dignidade dessa Pobreza. A união pessoal do Filho de Deus com a nossa natureza humana é recordada, então, como núpcias de Deus conosco (SC n. 6). A Pobreza é exaltada e homenageada como “esposa fidelíssima de Cristo”, que esteve com ele, do ventre da Virgem Mãe e do Presépio até a Cruz. A “Senhora Pobreza” aparece, então, como o Amor-Misericórdia, que foi “revelado em pessoa no modo de ser de Jesus Cristo, pobre e humilde” (Fontes Franciscanas, Mensageiro de Santo Antônio, p. 869). “Ela é benigna, silenciosa e imensa, como o Céu e a Terra; ela abraça cuidadosa e benignamente a caminhada da passagem íngreme e estreita, cheia de perigos e aventuras, do Encontro de Amor da nossa finitude mortal com o Amor que nos amou primeiro. Amor infinito que se faz finito, recolhido, ocultando-se na gruta da Senhora Pobreza, como o Natal de um Novo Céu e Nova Terra” (Fontes Franciscanas, 869-870).

  1. Um anjo apareceu aos pastores vigilantes
O Natal de Deus é silencioso e sub-reptício. Ele acontece no fundo do coração daqueles que, como os pastores, vigiam na calada da noite. Vigiar, significa estar atento para não se permitir a substituição do Natal do Menino pobrezinho nascido da pobrezinha Virgem Maria (2C199) por tantos outros Natais, muitas vezes inventados apenas para satisfazer uma “espiritualidade” de consumo de “vivências” ou para acalmar a má consciência em face à miséria e à injustiça como o “Natal dos meninos de rua”, o “Natal dos velhinhos esquecidos nos asilos”, o “Natal dos presidiários” o “Natal dos desempregados”, o “Natal do Papai Noel”, o “Natal da família” etc. ou, pior ainda pelos “Natais de comilanças”, etc.
Que São Francisco de Assis seja nosso exemplo. Quando inventou o presépio em Gréccio, tinha em mente deixar que este mistério em sua força nativa, estranha, impregnada de simplicidade, pobreza e humildade, fosse recordado e redespertado nos corações dos próprios cristãos. Foi o que aconteceu. Diz-nos Tomás de Celano: “A noite ficou iluminada como o dia: era um encanto para os homens e para os animais. O povo foi chegando e se alegrou com o mistério renovado em uma alegria toda nova” (1C n. 85).
No entanto, hoje, o próprio presépio tem estado como uma evocação longínqua, embaçada, apagada, arriscando se tornar mais um simulacro do que um sinal, um “sacramento”, com sua força reunificadora. Num mundo dessacralizado, em que o homem perdeu sua vida simbólica, como deixar que se abra aquela fenda no rito para que nos bafeje o sopro sagrado que nos vem de “um Deus humano e Homem divino vindouro que sempre esteve conosco na finitude desprezada de um estranho Deus? ” (Harada)1. Talvez seja preciso redescobrir, no santuário do fundo de nossas almas, o “meio-silêncio”, a “noite-alta”, em que o Filho de Deus quer nascer em nós. Pois, como dizia Orígenes, um dos padres da Igreja, retomado por Mestre Eckhart (Sermão 101): “em que me ajuda que esse nascimento [do Filho de Deus em natureza humana] aconteça sempre, se não acontecer em mim? ”. É como se hoje disséssemos: de que me adianta celebrar o Natal todos os anos, se a geração do Filho de Deus em mim não for se consumando dia após dia?
Conclusão
Se a exemplo de Maria, José e dos pastores estivermos vigilantes e atentos ao silencio do mistério que envolve e sustenta as realidades que nos cercam haverá de acontecer também conosco o milagre que aconteceu no famoso “presépio de Gréccio” inventado por São Francisco.
Multiplicaram-se nesse lugar os favores do Todo-Poderoso, e um homem de virtude teve uma visão admirável. Pareceu-lhe ver deitado no presépio um bebê sem vida, que despertou quando o Santo chegou perto. E essa visão veio muito a propósito, porque o menino Jesus estava de fato esquecido em muitos corações, nos quais, por sua graça e por intermédio de São Francisco, ele ressuscitou e deixou a marca de sua lembrança. Quando terminou a vigília solene, todos voltaram contentes para casa (1C 86).



1 Em Comentando I Fioretti, p. 70.   

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