NATAL DO SENHOR
(MISSA DA NOITE)
Pistas para uma Homilia franciscana
Liturgia da Palavra: Is 9, 1-6; Sl 95 (96), 1-2a.2b-3.11-12.13 (R. Lc
2,11); Tt 2, 11-14; Lc 2, 1-14
Tema: Um Menino nos foi dado
Mensagem: Acolhendo o Deus Menino também nós temos a graça
de tornar-nos meninos de Deus.
Imagem: Menino Jesus na manjedoura.
Rito: Beijo do Menino Jesus
Introdução: a Festa das festas
Toda vez que nasce uma criança uma nova luz se acende na mente e uma
grande alegria nasce no coração dos pais, irmãos, vizinhos e (por
que não?) de toda a humanidade. Não é só mais alguém que vem ao
mundo. Todos nascem de novo.
Hoje celebramos de novo o Nascimento do nosso Deus feito Menino
nascido em Belém. Por isso o salmista convida todos os povos à uma
exultação festiva universal, católica, isto é, cósmica e
ecumênica: “Alegrem-se os céus, exulte a terra, ressoe o mar e
tudo o que ele contém, exultem os campos e quanto neles existe,
alegrem-se as árvores das florestas [...] “Anunciai dia a
dia a sua salvação, publicai entre as nações a sua glória, em
todos os povos as suas maravilhas”.
É a Boa Nova, o “Euangelion”, a alegre Mensagem que os
mensageiros celestes, anunciam aos pastores: “Não temais,
porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos
hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é Cristo Senhor”.
Para
uma bela e frutuosa celebração desse mistério sigamos o exemplo de
São Francisco que “Celebrava com inefável alegria, mais que
todas as outras solenidades, a Natividade do Menino Jesus, afirmando
que era a festa das festas, em que Deus, feito um menino pobrezinho,
dependeu de peitos humanos” (2C n. 199).
-
Um filho nos foi doado
O
sublime e admirável do Natal, porém, não é apenas o nascimento de
Deus, mas o nascimento de Deus no coração, na mente, isto é, no
humano mais humano de todo homem não importando as condições
(i)morais, (a)éticas, espirituais, céticas ou ateias de quem quer
que seja. A única exigência é que sejamos homens de boa vontade,
isto é, que nos deixemos mover por aquela centelha, a mais profunda
do coração humano: o bem querer. Por isso diz o anjo: Não
tenhais medo, eu vos anuncio uma grande alegria que é para todo o
povo. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o
Cristo Senhor (v. 11) . Por isso, essa Noite é uma Noite feliz!
Noite de Paz! De júbilo! Reconciliação e Misericórdia.
O
Natal, portanto, diz respeito a todos os homens e a toda a criação
(Cfe. “Laudato Si” do Papa Francisco). Ou seja, a partir dessa
iniciativa de Deus, o homem e mesmo as criaturas todas são criadas
de novo, agora, a partir do alto, do espírito, da graça
misericordiosa de Deus. Pois, Ele se entregou por nós para nos
resgatar de toda maldade e purificar para si um povo que lhe pertença
e que se dedique a praticar o bem (Tt 2, 11).
Há
algo de inaudito nesse Dia: a criação toda, os homens todos, a
exemplo de Maria, engravidam de Deus. Na nova humanidade, que é
engendrada hoje, o Verbo prolonga sem fim o ato de seu nascimento e,
pela força de sua imersão no seio do mundo [...] toda matéria
agora é encarnada... (Teilhard de Chardin). A partir desse
mistério dá-se uma revolução universal: Deus não é mais só
Deus, mas Deus-humanado e o homem não é mais só homem, mas homem
divinizado. Deus se faz Menino para que o homem se torne menino-Deus.
O
primogênito de Maria (Lc 2, 7) torna-se também o primogênito de
todas as criaturas (Cl 1, 15), isto é, o sentido e o fundamento do
ser de toda a criação. Ele é, como dizia o teólogo franciscano
João Duns Scotus, o “summum opus Dei” (a suma obra de
Deus). Ora, o responsável pela suma obra, pela obra perfeita de
Deus, dizia ele, não pode ser o pecado, que é um defeito da
criatura, mas só pode ser o amor absolutamente livre e gratuito,
superabundante, sem porque nem para quê, de Deus: o mistério da
“Cháris”: da graça, quer dizer, do favor livre,
imerecido e indevido, da benevolência, da gratuidade e da
graciosidade do Deus Amor.
Poderíamos
também dizer: o mistério da misericórdia (Tito 3, 5), isto é, do
amor visceral, entranhado, de Deus pelos humanos. Por isso, hoje
ouvimos a leitura da Epístola de Paulo a Tito, que diz:
“Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos
os homens” (2, 11). Desde o advento de Jesus Cristo na carne de
nossa humanidade, toda a história humana aparece envolvida na
história da salvação divina. A sua obra de salvação é obra do
amor gratuito e gracioso de Deus pelos homens, fruto da benevolência
(cháris) do Pai. Jesus Cristo, o Ungido pelo Espírito Santo,
é o “Euangelion”, a Boa Notícia desta benevolência, o
rosto da misericórdia (MV), do amor entranhado, visceral, terno
e apaixonado, de Deus Pai pelos humanos.
O
evangelista diz não apenas que um menino nasceu para nós, mas,
também, que um filho nos foi dado. Isso significa que de
pouco me adiantaria celebrar o Natal se eu não permitisse que a
geração do Menino Deus (o Filho de Deus) em mim fosse se consumando
dia após dia.
- Um Menino nascido em Belém e deitado numa manjedoura
No
Menino de Belém se manifesta a humanidade, quer dizer, a humildade
de Deus, que rege, servindo a tudo e a todos. O Deus humanado, o
Menino de Belém, assume a nossa carne, e oferece a si mesmo, sim,
seu corpo, como pão. Não é à toa que “Belém” quer
dizer “casa do pão”. Por isso, ele está reclinado numa
manjedoura. Cada homem que o acolhe – que recebe o seu corpo
oferecido como pão – se torna “Belém” (casa do pão), dizia
Beda, o Venerável. Ele, em sua simplicidade, humildade e pobreza,
não aparece revestido de púrpura, mas de panos pobres, para que nós
sejamos investidos e revestidos da dignidade de filhos de Deus. Dizia
Mestre Eckhart que, se um rei se casa com uma plebeia, toda a sua
família se torna nobre. Nós, isto é, toda a família humana, fomos
enobrecidos e enriquecidos pela pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Maria
enfaixa o seu filho. Ele se deixa “enfaixar”, “atar”, por
amor de nós, para nos trazer a verdadeira liberdade. Ele aparece
enfaixado como um morto, isto é, ele assumiu a nossa mortalidade,
para nos conceder a imortalidade. Maria reclina o seu filho numa
manjedoura, numa cocheira, onde se alimentam o burro e o boi. Ele,
vindo “inaparente”, no silêncio e na humildade, quase não é
reconhecido pelos homens. O boi e o burro reconhecem o seu dono, mas
os homens custam a reconhecer o seu Senhor. É que Ele aparece no
brilho e no esplendor da pobreza, na finitude e fragilidade de nossa
condição humana. Em vez de nascer num berço de ouro e de poder, o
Rei do céu e da terra, nasce numa manjedoura, num presépio,
dependendo de peitos humanos.
São
Francisco ficou enternecido e apaixonado pelo mistério da Pobreza de
nosso Deus. O livreto intitulado “Sacrum Commercium”
contempla a dignidade dessa Pobreza. A união pessoal do Filho de
Deus com a nossa natureza humana é recordada, então, como núpcias
de Deus conosco (SC n. 6). A Pobreza é exaltada e homenageada como
“esposa fidelíssima de Cristo”, que esteve com ele, do ventre da
Virgem Mãe e do Presépio até a Cruz. A “Senhora Pobreza”
aparece, então, como o Amor-Misericórdia, que foi “revelado em
pessoa no modo de ser de Jesus Cristo, pobre e humilde” (Fontes
Franciscanas, Mensageiro de Santo Antônio, p. 869). “Ela é
benigna, silenciosa e imensa, como o Céu e a Terra; ela abraça
cuidadosa e benignamente a caminhada da passagem íngreme e estreita,
cheia de perigos e aventuras, do Encontro de Amor da nossa finitude
mortal com o Amor que nos amou primeiro. Amor infinito que se faz
finito, recolhido, ocultando-se na gruta da Senhora Pobreza, como o
Natal de um Novo Céu e Nova Terra” (Fontes Franciscanas, 869-870).
Um anjo apareceu aos pastores vigilantes
O Natal de Deus é silencioso e sub-reptício. Ele acontece no fundo
do coração daqueles que, como os pastores, vigiam na calada da
noite. Vigiar, significa estar atento para não se permitir a
substituição do Natal do Menino pobrezinho nascido da pobrezinha
Virgem Maria (2C199) por tantos outros Natais, muitas vezes
inventados apenas para satisfazer uma “espiritualidade” de
consumo de “vivências” ou para acalmar a má consciência em
face à miséria e à injustiça como o “Natal dos meninos de rua”,
o “Natal dos velhinhos esquecidos nos asilos”, o “Natal dos
presidiários” o “Natal dos desempregados”, o “Natal do
Papai Noel”, o “Natal da família” etc. ou, pior ainda pelos
“Natais de comilanças”, etc.
Que São Francisco de Assis seja nosso exemplo. Quando inventou o
presépio em Gréccio, tinha em mente deixar que este mistério em
sua força nativa, estranha, impregnada de simplicidade, pobreza e
humildade, fosse recordado e redespertado nos corações dos próprios
cristãos. Foi o que aconteceu. Diz-nos Tomás de Celano: “A
noite ficou iluminada como o dia: era um encanto para os homens e
para os animais. O povo foi chegando e se alegrou com o mistério
renovado em uma alegria toda nova” (1C n. 85).
No
entanto, hoje, o próprio presépio tem estado como uma evocação
longínqua, embaçada, apagada, arriscando se tornar mais um
simulacro do que um sinal, um “sacramento”, com sua força
reunificadora. Num mundo dessacralizado, em que o homem perdeu sua
vida simbólica, como deixar que se abra aquela fenda no rito para
que nos bafeje o sopro sagrado que nos vem de “um Deus humano e
Homem divino vindouro que sempre esteve conosco na finitude
desprezada de um estranho Deus? ” (Harada)1.
Talvez seja preciso redescobrir, no santuário do fundo de nossas
almas, o “meio-silêncio”, a “noite-alta”, em que o Filho de
Deus quer nascer em nós. Pois, como dizia Orígenes, um dos padres
da Igreja, retomado por Mestre Eckhart (Sermão 101): “em que me
ajuda que esse nascimento [do Filho de Deus em natureza humana]
aconteça sempre, se não acontecer em mim? ”. É como se hoje
disséssemos: de que me adianta celebrar o Natal todos os anos, se a
geração do Filho de Deus em mim não for se consumando dia após
dia?
Conclusão
Se a exemplo de Maria, José e dos pastores estivermos vigilantes e
atentos ao silencio do mistério que envolve e sustenta as realidades
que nos cercam haverá de acontecer também conosco o milagre que
aconteceu no famoso “presépio de Gréccio” inventado por São
Francisco.
Multiplicaram-se nesse lugar
os favores do Todo-Poderoso, e um homem de virtude teve uma visão
admirável. Pareceu-lhe ver deitado no presépio um bebê sem vida,
que despertou quando o Santo chegou perto. E essa visão veio muito a
propósito, porque o menino Jesus estava de fato esquecido em muitos
corações, nos quais, por sua graça e por intermédio de São
Francisco, ele ressuscitou e deixou a marca de sua lembrança. Quando
terminou a vigília solene, todos voltaram contentes para casa (1C
86).
1
Em Comentando I Fioretti, p. 70.
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