quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Pistas homilético-franciscanas

 20º DOMINGO DO TEMPO COMUM
14/08/2016

Liturgia da Palavra Jr 38,4-6.8-10; Sl 39; Hb 12,1-14; Lc 12,49-53
Tema-mensagem: Com o fogo da Paixão de Cristo empunhemos a espada da Cruz para a luta
Sentimento de lutadores de Cristo.
Introdução:
No evangelho de hoje a fala de Jesus se caracteriza com alguns ditos muito fortes e provocantes: “Fogo vim trazer à terra – e, o que quero senão que ele se acenda? ”, “Vós pensais que vim trazer paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão”. À primeira vista parece contradizer toda a sua fala e toda a sua prática acerca da paz e da misericórdia. Na verdade, trata-se de mais uma tentativa de não apenas tornar conhecido e aceito o sentido de sua vocação e missão - bem como a vocação e missão de seus seguidores - mas também de impedir que a grandeza desta vocação-missão caia no marasmo da podridão de uma vida cristã e religiosa acomodada e comodista. Para isto ele usa o recurso dos “ditos paradoxais”.
A finalidade dos “ditos paradoxais”, em grego “Paradoxia”, a exemplo da fala dos profetas, não é outro senão despertar a atenção, provocar o espanto e a admiração para um fogo que, neste caso, crepita de baixo das cinzas do nosso cotidiano.
  1. A paixão (fogo) de Jesus por um Pai louco por seus filhos
Na Sagrada Escritura, muitas vezes, Deus se revela como fogo: “um fogo devorador” (Hb 12,29) que queima sem se consumir como na sarça ardente de Moisés. Este Fogo veio ao mundo definitivamente e em plenitude através de Jesus Cristo. Sua revelação tem início na famosa e admirável teofania no rio Jordão: Os céus se abriram, e Ele viu o Espírito de Deus descer em forma de pomba e pousar sobre Ele. E do céu veio uma voz que dizia: “Este é meu Filho muito amado, no qual ponho todo meu bem-querer (Mt 4,16-17). Testemunho que se repetirá na teofania do Tabor.
Aí estava, em resumo, o fogo, a luz do novo Céu e do novo Homem que Jesus, em nome de seu Pai, devia inaugurar em Si e a partir de Si para toda a humanidade, para cada homem que então viesse a esse mundo. A consumação desta revelação se dará, depois, na Cruz.
Aceso no lenho do sacrifício da Cruz, este fogo se eterniza dividindo o mundo e sua história. Agora, ninguém mais, nem mesmo as criaturas irracionais, ficará isento ou excluído do calor da Paixão de Jesus e da luz de suas labaredas. A partir da cruz, o fogo misericordioso do Pai faz nascer das cinzas do velho homem, caído e decaído pelo pecado, um homem novo; de um homem meramente carnal, terrestre nasce um homem celestial, divino; o ardor de suas chamas faz derreter as geleiras da indiferença e do desamor nos corações; faz amolecer os corações endurecidos pelo ódio, rancor, inveja, prepotência e soberba. De uma história de desgraça faz surgir uma história de graça, perdão e misericórdia.
Em Pentecostes, este fogo de Cristo se manifesta em plenitude como o sopro abrasador do Espírito Santo1 que invade o universo inteiro. Para fazer-se digno deste fogo, São Francisco rezava ao “Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus” para que concedesse a ele e a todos os seus frades a graça de viverem sempre “iluminados e abrasados pelo fogo do Espírito Santo...” (CO)
  1. Devo receber um Batismo e como estou ansioso até que isto se cumpra
O segundo dito de Jesus, paralelo ao primeiro, fala de batismo: “tenho que ser batizado com um batismo – e como estou angustiado até que ele se consuma”. Se o primeiro dito remetia ao elemento fogo, o segundo remete ao elemento água. Batismo é imersão, banho, mas também, provação, teste, testemunho. Por isso, o banho de Jesus, em lugar de água, será de sangue, de martírio. É evidente, então, que, também aqui, Jesus está se referindo à paixão e morte na cruz, ao seu banho de sangue. Banhado pelo próprio sangue, ele purificaria nossas almas e inflamaria nossos corações com o fogo do Espírito Santo. Segundo santo Ambrósio, Jesus ao dizer que estava “ansioso” revela a grandeza da misericórdia de seu coração. Dizia ele: “A misericórdia do Senhor é tão grande que o obriga [...] a apressar sua paixão para conosco”. O bispo de Milão, observa ainda que o verbo latino “coangor” usado para expressar este sentimento significa justamente: “angustiar-se com2. Jesus, portanto, como um bom pai ou uma boa mãe com os sofrimentos de seus filhos, se angustia conosco, com nossas misérias e desgraças humanas. Nisso se manifesta a sua comiseração, a sua compaixão, para conosco, enfim, a sua misericórdia, amor cordial, visceral. Seu coração vive apertado, ansioso até chegar o momento de receber o seu batismo de sangue, até chegar o momento em que ele dirá: “Tudo está consumado. Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito. Terminei a obra que me confiaste. Entrego em tuas mãos os homens que me destes. Agora eles são de novo teus filhos muito queridos como Eu o sou”.
Cristo torna-se assim, o próprio fogo de Deus que começa a incendiar o coração dos apóstolos e dos seus seguidores. Por isso, no dizer de São Martinho, também “o homem é fogo”.
3. Não vim trazer a paz, mas a divisão
Depois destes dois ditos Lucas acrescenta outros pronunciamentos paradoxais de Jesus. “Porventura pensais que é a paz que eu vim estabelecer na terra? Não, eu vo-lo digo, mas antes a divisão. Pois doravante, se houver cinco pessoas numa casa, elas serão divididas: três contra duas e duas contra três. Dividir-se-ão pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra”.
Nós perguntamos: Mas, como assim? Cristo não nos veio trazer a paz? Não anunciaram os anjos, na noite de Natal, que enfim chegara a Paz na Terra para todos os homens amados por Deus?! Sim, mas a paz que Cristo veio estabelecer não é uma paz enganosa, não é a paz do mundo, uma paz vulnerável, passageira, assentada em conchavos humanos e que se estende pelo curto espaço de tempo entre uma guerra e outra. Por isso, ele mesmo declara e insiste: “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14, 27). Por isso, a paz que Cristo introduz no mundo é cara e preciosa porque tem sua origem n'Aquele que deixa as alturas celestes para morar no meio da baixaria de nossas vilezas; n'Aquele que, morrendo na Cruz, reconciliou de vez e para sempre o Céu e a Terra, o Criador e a criatura. Paz, aqui, portanto, é luta, combate para criar o Reino de Deus, onde as pessoas se perdoam, se reconciliam, vivendo em profundo respeito e acolhimento das diferenças e dos diferentes, principalmente com os mais vis, condenados, maltratados e desprezados pela sociedade humana. Assim, o cristão em vez de pacifista será sempre um lutador, um guerreiro, um mártir da paz; alguém que, em vez de gozar dos benefícios procura ser um fazedor da paz, que suporta o sofrimento desta luta.
Por isso os discípulos do “Príncipe da Paz” saberão viver em harmonia com todos e com tudo no meio do combate, da tentação e da perseguição. Ninguém e nada lhes fará mal. É neste sentido que a segunda leitura de hoje, partindo do exemplo dos atletas e lutadores, exorta os cristãos a se disporem para a paciência (hypomoné) no combate (agón), assim recomendada por Jesus: “Na vossa paciência tornareis próprias as vossas vidas” (Lc 21, 19: en te hypomoné hymon ktésasthe tàs psýchás hymôn).
A espada que Cristo veio trazer é para cortar até à raiz o demônio da paz falsa, assentada na tranquilidade da auto-satisfação e na acomodação que busca suas próprios sastisfações e interesses. A esta paz, São Francisco chamava de “acídia”. No famoso texto Sacrum Commercium, ouvimos a Senhora Pobreza lamantar-se: “Mas ai! Depois de pouco tempo, fez-se a paz e aquela paz era mais grave do que a guerra (...). O diabo, enfurecendo-se contra muitos que estavam comigo, fazia com que o mundo os aliciasse e a carne cobiçasse a ponto de muitos começarem a amar o mundo e as coisas que são do mundo” (c. 12).


  1. Ficarão divididos o pai contra o filho, o filho contra o pai ...
Do mesmo modo, há uma união que traz a ruína espiritual ao homem, especificamente, ao discípulo de Cristo. Esta falsa união não é a conquista da identidade e a acolhida da diferença no amor. É, antes, a indiferença. É o ser-com-os-outros que se dá quando o homem é “como todo o mundo”. O “todo o mundo”, aqui, porém, é “os outros” do domínio público, da publicidade. É o “a gente”: o impessoal, o indiferenciado e indiferente. É o caminhar indeciso e inconsciamente por caminhos batidos e largos nos quais tudo se pode, tudo é permitido e que, por isso, arruínam o homem. Para seguir Cristo, é preciso decisão. É preciso cisão, corte com o mundo, isto é, desprender-se dos modos de ser e de viver dos homens que vivem no esquecimento de que todos temos ou melhor somos filhos de um único e mesmo Pai, visceralmente apaixonado por todos. Para isso, porém, é preciso que tenhamos a coragem de cortar nosso amor aos bens e aos prazeres terrenos, para poder vincular-nos a Ele, a Cristo no seguimento de seu caminho, de suas “pegadas”, como dizia São Francisco.
De modo semelhante, há uma união familiar que é danosa para o homem. É quando todos vivem numa simbiose indiferenciada, confusa, inconscia; quando a unidade com os outros do mesmo sangue, pai e mãe, filhos e irmãos leva a não desenvolver uma individualidade e uma identidade pessoal diferenciada. Quando os pais não educam os filhos para a autonomia e autorresponsabilização pela vida própria os levam à ruina, a perdição. O que interessa, acima de tudo, “é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia” (Amoris Laetitia, 261).
Para seguir Cristo, é preciso por a família na sua relação maior: o mistério da SS. Trindade, princípio de toda união familiar. Ela não pode, portanto, ser um valor absoluto. Por isso, os pais não têm o direito de se colocar entre Cristo e os filhos. O não de São Francisco ao seu pai, Pedro de Bernardone, era necessário, para dizer sim ao seguimento de Jesus Cristo e poder chamar a Deus de “Pai nosso que estás nos céus”. O discípulo de Jesus precisa ser um ser singular: um verdadeiro indivíduo. A sua decisão por Cristo o torna só. Ninguém pode decidir por ele, nem mesmo as pessoas mais íntimas e familiares. Nas palavras de Bonhoeffer:
No chamado de Jesus já aconteceu a ruptura com as condições naturais nas quais o homem vive. Ruptura que não é cumprida por aquele que está no seguimento, mas que Cristo mesmo já realizou no momento em que o chama. Cristo desvinculou o homem da sua imediatez com o mundo, e o pôs na imediatez consigo mesmo. Nenhum homem pode seguir Cristo, sem reconhecer e aceitar a ruptura já cumprida. Não é o árbitro de uma vida, guiada pelo próprio querer, mas Cristo mesmo a guiar o discípulo em tal ruptura (...). Com a sua encarnação, ele se pôs entre mim e as realidades factuais do mundo. Não posso mais voltar atrás. Ele está no meio.
Conclusão
Eu vim lançar fogo a terra... Eu vim trazer divisão...” são ditos fortes para exortar-nos à luta sem tréguas, ao combate contra tudo e conta todos que nos afastam de nossa comum origem: o Pai do Céu; pois Dele (de)pendemos e a Ele devemos devolver e restituir tudo e todos, pincipalmente nossos entes mais queridos.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
Informações: dorvalinofassini@gmail.com






1 Significativa é a semelhança entre a figura mítica de Prometeu, na cultura grega, e realidade histórico-salvífica de Jesus Cristo, no Novo Testamento. Prometeu, um deus amante dos homens, rouba o fogo do céu, dos deuses, e o traz para a terra, compartilhando-o com os homens. Também Prometeu aparece atado a um lenho, sofrendo o suplício por ter amado os homens. Também ele é consumido, mas sua força se renova a cada dia. Dentre aquilo que Simone Weil chamou de “intuições pré-cristãs” dos gregos, parece estar a figura de Prometeu.
2 O verbo grego é “synéchomai”, quer dizer, “ter-se estreito”, “manter-se apertado”. “Angustia”, com efeito, quer dizer estreitamento, aperto, do coração.