quarta-feira, 27 de julho de 2016

Pistas homilético-franciscanas

18º Domingo do Tempo Comum
31/07/2016
Liturgia da Palavra Ecl 1,2; 2,21-23; Sl 89; Cl 3,1-5.9-11; Lc 12,13-21
Tema-mensagem: Não nos bens deste mundo, mas em Deus está nossa vida e segurança
Sentimento: cuidado com a ganância
Introdução
Vivemos um tempo de angústias por causa da insegurança. A cada momento não apenas nossos bens, mas também nossas vidas podem ser assaltadas e tiradas. Onde e em quem encontrar segurança? Eis o sentido e o mistério de nossa celebração de hoje.
1. A desgraça de uma vida vazia
Toda a Palavra de Deus, hoje, é para despertar-nos acerca da desgraça de cairmos no vazio absoluto da “ganância”, no latim “avareza”. Esta palavra aparece no evangelho (Lc 12, 15), na segunda leitura (Col 3, 5) e, indiretamente, também, na primeira leitura que fala da “vaidade das vaidades! Tudo é vaidade”. Avareza indica o modo de ser de quem procura ter sempre mais. Sempre mais e mais bens, sempre mais e mais dinheiro. Junto com essa ganância vem outros males como: fome de poder, presunção ou arrogância, querer levar vantagem em tudo, roubar, exercer influência política, fazer violência, desmesura, arrogância. E de reboque, a desordem, o excesso, a falta de regras, de ordenamento, de simplicidade. Assim, a avareza perturba a ordem das coisas, do céu e da terra, do divino e do humano.
Para trabalhar este tema, o Evangelho de hoje começa com uma questão muito comum e tão antiga quanto o homem: a briga entre irmãos pela herança deixada por seus pais. E o pior é que, às vezes, pede-se ou invoca-se a intervenção de Deus e dos religiosos para que ajudem em favor de um ou de outro. Entre os judeus, não era raro que se pedisse este tipo de arbitragem aos rabinos. Jesus, então, é claro: “Homem, quem me estabeleceu para ser juiz ou repartidor sobre vós? ”. Sua missão, em vez dos bens perecíveis, era repartir os bens eternos e que realmente nos dão a verdadeira vida, a verdadeira segurança. Bens que só seu Pai pode nos dar e pelos quais devemos trabalhar e lutar.
Empregando a palavra “homem”, Jesus quer dizer que aquele pedido é de “homens carnais” (cfr. 1 Cor 3, 3) e não “de homens de Deus”. Por isso, se recusa a assumir uma tarefa temporal, de chefe e juiz, se distinguindo, assim, de Moisés (cfr. Ex 2, 14; Atos 7, 27-35). Recordemos que Ele está a caminho de Jerusalém para dar, repartir aos homens o Bem de todos os bens, sua própria vida. Como, então, ocupar-se com estas ninharias humanas repletas de ganância?!
  1. Ficai atentos
Jesus, então, aproveita esta oportunidade para o seu ensinamento: “Ficai de olho e ponde-vos em guarda contra toda avareza” (pleonexía). São Cirilo comenta este “toda a avareza”: é preciso ficar vigilante contra toda a avareza, quer dizer, tanto contra a grande quanto a pequena. A avareza é vã, isto é, vazia e danosa. Ela arruína as almas, isto é, as vidas dos homens, não só na dimensão pessoal, mas também comunitária e social.
Por isso, na exortação “Evangelii Gaudium”, dentre as várias questões sociais que clamam aos céus, o Papa fala que também a economia e a política econômica fazem parte do gemido da humanidade e da terra na ânsia pela liberdade dos “filhos de Deus”. Os problemas sociais, provocados neste campo da atividade humana, aumentam o clamor das pessoas e dos povos pobres da terra. A sociedade de produção, hoje expandida pela face do planeta, por meio da globalização econômica, baseada na metafísica do lucro, precisa de urgente transformação. Em lugar da “autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira”, causa da “desigualdade social”, que, por sua vez, são “a raiz dos males sociais”, é preciso pôr, como princípio, “a dignidade da pessoa humana e o bem comum” (n. 202). Em seguida questiona um dos dogmas do liberalismo: “Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento econômico, embora o pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição de renda, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo” (n. 204).
Assim, a admoestação de Jesus, exige, pois uma “metánoia”, uma transformação, uma revolução também no pensamento, no espírito. É preciso romper com a nescidade, isto é, a ignorância, a insensatez, a estupidez, que está na base do comportamento avarento do homem: “pois, mesmo na abundância, a vida de alguém não procede de seus bens” (Lc 12, 15). Nela, só se conhece a pobreza como miséria. Esta sociedade, que é movida pela ganância da riqueza, não conhece a liberdade da pobreza essencial. Para ela, o que unicamente importa é o ter. Não o ser. Por isso, ela só pode entender pobreza como a carência do ter. Para ela, pobreza é não ter o necessário para viver. Do mesmo modo, riqueza é o ter em abundância, mais do que o necessário, para viver. A indigência de nossa sociedade, de nosso mundo atual, consiste em não reconhecer sua própria miséria espiritual. Consiste em ter no ter o único parâmetro para considerar o que é pobreza e o que é riqueza. Consiste em desconhecer a pobreza do ser. No entanto, a pobreza essencial, aquela que o evangelho chama de “pobreza no espírito”, tão bem vivida por São Francisco, não se define pelo ter, mas sim pelo ser. Os homens buscam a segurança da vida na abundância dos bens. Apostam tudo no esforço de produzir, no gosto de consumir, no afã de controlar, achando que, assim, estarão seguros e com uma vida longa. Pensam que a vida provém dos seus méritos, dos seus trabalhos, das produções e suas conquistas. Néscios, insensatos, estúpidos, tapados! Não entendem que a vida é dom. Que o mistério da gratuidade ou a gratuidade do mistério é a sua fonte. Não entendem que a vida não pode nunca ser uma posse do homem; que o homem não garante a plenitude de sentido de sua vida pela abundância do ter, mas sim pela pobreza do ser.
  1. Dar e receber, o modo de ser de Deus e do pobre
Pobreza no ser ou no espírito significa, sem mais e nem menos, ser todo vazio, todo disponibilidade para bem receber a riqueza do mistério da gratuidade, a riqueza essencial: a bondade difusiva de si mesma do Bem, daquele único Bom, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Este é a fonte do ser e da vida. É daí que vem a vida do homem e não da abundância de bens.
Uma legenda franciscana, mostra este modo de ser do pobre no espírito, encarnada na pessoa de um companheiro de São Francisco, frei Junípero, que “dava aos pobres o que podia pelo amor de Deus”. Comentando esta passagem, frei Harada escreveu:
“Tudo que o homem tem e pode ter, a própria possibilidade de ter, ele a recebe. Receber, pois, é a própria possibilidade de ter (...). O ser do homem é apenas receber. Se o homem é todo ele um puro receber, nada é, nada pode a não ser e receber (...). É que o ter se fundamenta no receber. E o receber, por sua vez, se fundamenta no dar de Deus. Dar é o vigor de Deus, o poder da difusão gratuita, livre, incansável, superabundante e sem medidas. Todos os seres são à mercê dessa doação. O dar-se do ser é pelo amor de Deus. Ter significa, portanto, receber, isto é, ater-se inteira e incondicionalmente a esse vigor da doação gratuita de Deus”1.
Quem está na pobreza essencial cria uma profunda afeição para com os pobres da terra. Afeição que é amizade, gratuidade do bem-querer e do bem-fazer, cuidado com a fragilidade, simpatia, compaixão, misericórdia. O Papa Francisco explica assim esse modo de se relacionar com o pobre:
“O nosso compromisso não consiste exclusivamente em ações ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de ativismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro “considerando-o como um só consigo mesmo” (S. Tomás). Esta atenção amiga é o início de uma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efetivamente o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria, com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente de sua aparência: “do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe dê algo de graça” (S. Tomás). Quando amado, o pobre “é estimado como de alto valor” (S. Tomás), e isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou políticos. Unicamente a partir dessa proximidade real e cordial é que podemos acompanha-los adequadamente no seu caminho de libertação” (EG, n. 199).
  1. Parábola do louco avarento
Jesus, completa seu ensinamento com a parábola do louco avarento. Mais que uma comparação, Jesus quer dar um exemplo, isto é, fazer ver, de modo concreto o que acontece com o rico insensato. Como a terra produzira muito e os celeiros estavam abarrotados, ele resolveu aumenta-los, e fazer uma reserva de bens “para longos anos”. Achava que sua velhice estava garantida com os bens que amontoara. No entanto, na noite em que resolvera encaminhar estes projetos de segurança, sua vida foi pedida. Ele dormiu e não amanheceu. Nem mesmo o dia seguinte ele conheceu, para poder gozar de sua riqueza. Bem diz o ditado: o homem põe e Deus dispõe. E a sentença de Deus foi: “Insensato, esta noite mesmo irão reclamar a tua alma, e o que tu preparaste, quem é que o terá? ”. Segue então o ensinamento: “Eis o que acontece a quem reúne um tesouro para si mesmo, em vez de se enriquecer junto a Deus” (Lc 12, 21).
O pecado deste homem é de não reconhecer que os frutos que colheu patenteiam a generosidade de Deus, que faz cair a chuva sobre justos e injustos; de atribuir a si mesmo, ao seu trabalho, aos seus méritos, a sua aparente riqueza, os bens que possui em abundância. Esqueceu sua essência, que é a de receber e doar, na gratuidade. Confunde a propriedade de ter e de ser com a posse e o desfrute dos bens. Nem mesmo se recorda dos outros, muito menos dos pobres. Embora os celeiros estejam abarrotados, a sua alma está sempre carente, pois é insaciável na ganância de possuir mais e sempre mais. Em vez de ser um canal que deixa fluir através de si a fonte da gratuidade, prefere tornar-se uma represa. Fecha-se em si mesmo, para reunir mais e mais bens. Basílio nota que a pergunta que ele faz à sua alma – “que farei? ” – é a pergunta dos pobres, quando estão oprimidos pelas suas penúrias e misérias. Esta alma está, sim, oprimida, mas pelas preocupações com suas riquezas, com as suas rendas. É paradoxal! Trata-se, segundo Gregório, da angústia nascida da saciedade, da abundância. Basílio indica como este homem está esquecido dos pobres. Pensa apenas em amontoar, não em repartir. Considera seus os bens que lhes foram dados. E pergunta:
“De onde os recebeste para leva-los pela vida? [...]. Porque se qualquer um, que, tendo recebido o necessário para satisfazer as suas necessidades, deixasse o que sobra aos pobres, não haveria nem ricos nem pobres”.
Esta fala nos recorda o ensinamento do Papa Francisco sobre a solidariedade – que, na verdade, é outra palavra para misericórdia – e a questão da propriedade privada. Ele diz: “A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse dos bens justifica-se para cuidar deles e aumenta-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida com decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde” (n. 189). Este sentido o expressa também são Basílio: “O pão do faminto é o que tu tens, o vestido do desnudo, o que tu conservas no guarda-roupa, o calçado do descalço, o que amontoas, e o dinheiro do indigente, o que tu escondes debaixo da terra. Cometes, pois, tantas injustiças, quantas são as coisas que podes dar”.
São Francisco, na sua carta aos fiéis, em que procura-os exortar à penitência, fala também da insensatez do homem que se afoga nos bens do mundo, vivendo com avareza. Ele diz:
“Nada tendes neste século nem no futuro. Julgais possuir por muito tempo as vaidades deste século, mas estais enganados, porque virá o dia e a hora em que não pensais, nem sabeis e ignorais. Enfraquece o corpo, a morte se aproxima, chegam os parentes e os amigos, dizendo: ‘dispõe os teus bens’. Eis que sua esposa e filhos, parentes e amigos fingem chorar. E, virando-se, os vê chorando. Movido, então, por uma falsa comoção, pensando consigo mesmo, diz: ‘eis que ponho em vossas mãos a alma, meu corpo e todas as suas coisas. ’ É verdadeiramente maldito este homem que confia e entrega em tais mãos sua alma, seu corpo e todas as suas coisas. Por isso, diz o Senhor pelo profeta: ‘Maldito o homem que confia no homem’. E imediatamente fazem vir o sacerdote. Diz-lhe o sacerdote: ‘queres receber a penitência de todos os teus pecados? ’ Responde: ‘quero’. Queres satisfazer com os teus bens, e como podes, pelas faltas e por aquilo que fraudaste e enganaste os homens? Responde: ‘não’. Diz o sacerdote: ‘por que não?’ Por que entreguei tudo às mãos dos parentes e amigos’. E começa a perder a fala e assim morre aquele miserável. Mas, saibam todos que, onde e como quer que o homem morra em pecado mortal, sem a satisfação, e que ele pode satisfazer e não satisfaz, o diabo rouba-lhe a alma do corpo com tanta angústia e tribulação que ninguém pode saber, a não ser quem experimenta. E todos os talentos, poder e ciência que julgava ter ser-lhe-ão tirados. Aos parentes e amigos deixa os seus bens. Estes, tomando-os e dividindo-os entre si, dizem depois: ‘maldita seja sua alma porque pôde dar e adquirir mais para nós e não o fez’. Os vermes comem o corpo. Assim, perde ele o corpo e a alma neste breve século e irá para o inferno, onde será atormentado sem fim”.
O homem sábio, porém, não considera os bens de que dispõe a fonte de sua vida, mas a gratuidade do mistério ou o mistério da gratuidade, isto é, o Bem fontal, o Pai. Como o sábio da primeira leitura, ele está consciente da vaidade daquelas coisas a que os homens normalmente se apegam.
A vida terrena do homem é efêmera. O salmo de hoje traz o mesmo ensinamento. Os filhos de Adão são criaturas efêmeras:
“Vós reduzis o homem ao pó da terra
e dizeis: «Voltai, filhos de Adão».
Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passou
e como uma vigília da noite.
Vós os arrebatais como um sonho,
como a erva que de manhã reverdece;
de manhã floresce e viceja,
de tarde ela murcha e seca”.
A sabedoria consiste em viver tendo sempre em mente a finitude e a mortalidade da vida, e, ao mesmo tempo, confiando mais na gratuidade e na bênção divina do que nos próprios recursos e méritos:
“Ensinai-nos a contar os nossos dias,
para chegarmos à sabedoria do coração.
Voltai, Senhor! Até quando…
Tende piedade dos vossos servos.
Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade,
para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
Desça sobre nós a graça do Senhor nosso Deus.
Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos”.
Conclusão: Ricos diante de Deus
Depois do exemplo dado com a parábola, Jesus conclui: “Eis o que acontece a quem reúne um tesouro para si mesmo, em vez de se enriquecer junto de Deus”. Enriquece diante de Deus quem sabe, sempre de novo, receber e dar, tornando-se passagem para a sua bondade difusiva, fontal. Enriquece diante de Deus aquele que sabe que a riqueza essencial não é a posse de muitos bens, mas é a superfluência da gratuidade. Quando morre, a única coisa que o homem leva consigo é a virtude que encarnou. Tudo o mais fica. É ainda rico diante de Deus quem muito amou os pobres; aqueles que, como diz o evangelho, souberam fazer amigos com o “dinheiro iníquo”, os quais irão recebe-los no reino de Deus, a saber, os pobres.
Além de tudo isso, Paulo adverte, na segunda leitura, que a avareza é idolatria. De fato, o avaro, em vez de servir a Deus, serve ao dinheiro. Em vez de se servir do dinheiro, serve ao dinheiro, fica seu escravo e adorador. Em vez de adorar o Deus vivo e santo, adora o poder que o valor do dinheiro parece lhe proporcionar. E conclui:
“Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra. Porque vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus”.
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
Informações: dorvalinofassini@gmail.com


1 Harada. Da pobreza. Revista Vozes: 1977, n. 04, p. 313.   

sábado, 23 de julho de 2016

Pistas homiléticas franciscanas

17º Domingo do Tempo Comum
24/07/2016
Pistas homiléticas franciscanas
(Cf. “Exposição sobre o Pai Nosso”, de São Francisco)
Liturgia da Palavra Gn 18,20-32; Sl 137; Cl. 2,12-14; Lc 11,1-13
Tema-mensagem: Dizei: Pai, sanificado seja o teu nome
Sentimento: júbilo filial
Introdução
Domingo passado celebramos a alegria de sermos hospedeiros do divino. Hoje, Jesus vai nos introduzir no caminho que nos leva ao íntimo mais profundo do nosso hóspede: o Pai do Céu. Este caminho é a Oração do Pai Nosso.
1ª parte: a Oração de Cristo
  1. Jesus estava em oração
O evangelho começa dizendo que “Um dia, ele (Jesus) estava num lugar em oração”. O evangelista Lucas gosta de apresentar Jesus em oração. Mas, por que Jesus ora? A resposta é simples. Por ser homem. Por ter assumido nossa natureza humana, com toda a sua fragilidade, Jesus precisa do encontro com o Pai assim como a água precisa da fonte. Sua oração é uma expressão do mistério de sua encarnação. Se Jesus não fosse homem não precisaria rezar. Por isso, depois de mortos também nós não precisaremos mais rezar porque estaremos repousando inteiramente Nele, nosso “Tudo”. Jesus, reza, pois pelo mesmo motivo pelo qual, come, bebe, dorme, etc. Pois, o homem não vive só de pão, vive também, e, acima de tudo, da unidade com Aquele que é a fonte de tudo, que é a vida de sua vida, Deus. Se não estiver unido a esta fonte, morre, ainda que pareça vivo. Torna-se um meio-morto ou, no sentido espiritual, alguém que já desceu à sepultura.
  1. Ensina-nos a rezar
Quando terminou, um dos discípulos lhe disse: ‘Senhor, ensina-nos a rezar, como João o ensinou aos seus discípulos”. João indicara um caminho de ascese devota aos seus discípulos: o exercício da oração e do jejum (cfr. Lc 5, 33). Jesus, porém, que trouxera uma nova doutrina, ensinaria também aos discípulos um novo modo de orar: rezar não mais a partir de si, mas do Pai. Em toda a oração de Cristo e do cristão há pois este a priori: o Pai nos quer bem e já se voltou para as nossas necessidades, antes mesmo de pedirmos a ele alguma coisa. A fé nesta bondade do Pai, que é anterior a todas as nossas súplicas, é que move e sustenta nossa oração. Na verdade, é esta fé que desperta em nós o “Espírito da oração e da devoção” (São Francisco). Por isso, dizia Jesus à samaritana que os verdadeiros adoradores deviam adorá-Lo em espirito e verdade. Logo, em se tratando de oração cristã, o princípio, o primeiro agente é sempre o Espírito do Senhor e jamais o sujeito que reza. Esta é a diferença fundamental da nossa oração com a oração dos fariseus e dos pagãos. Entre esses quem principia e sustenta a oração são eles mesmos enquanto que entre nós quem reza é sempre o Espírito. Por ser clamor do Espírito, a oração se torna, assim, o clamor que sobe de nosso coração e toca o coração do Pai. Nós somos os pupilos, isto é, as pupilas, as meninas dos olhos do Pai. Jesus nos garante isso. E ele conhece o Pai como ninguém. Como o Pai não se deixaria tocar pela súplica dos seus pupilos? A doutrina da oração, ensinada por Jesus e compendiada no Pai Nosso, pressupõe a fé que se manifesta com essa confiança. A oração de Cristo e do cristão não é outra coisa senão sua necessidade maior: “amar muito aquele que muito nos amou” (São Francisco).
Por tudo isso, o Pai-Nosso é o resumo do Evangelho, a oração de todas as orações, a oração por excelência, a essência e o limite, isto é, a perfeição, da oração dos discípulos de Jesus. Duas partes estruturam nitidamente esta oração. A primeira, embora se expresse em forma de petições, no entanto, como observa São Basílio, é, no fundo, um louvor. A segunda é composta de súplicas, que emergem da nossa fragilidade humana.
  1. Dizei: Pai!
Dizei: Pai!, assim começa o grande ensinamento de Jesus: um imperativo, uma súplica: “dizei”! Ou seja: “por favor, não digam jamais nenhuma outra coisa senão esta: que Deus é Pai. Jamais, que Ele seja juiz, que Ele castiga, que esteja distante ou que não atenda vossos pedidos e necessidades. Aconteça o que acontecer digam: ´Pai!´”.
Comentando a palavra Pai, Santo Agostinho diz: “quanta graça encerra esta primeira palavra!”. Ela ressoa a gratuidade e a graciosidade da benevolência do Pai pelos homens. Em virtude da graça de Cristo, que assumiu a natureza deles, e deu a vida por eles, na paixão e morte da cruz, alcançando-lhes o perdão, eles, que estão na terra, podem levantar seus olhos para os céus e chamar a Deus de Pai. De servos, por graça divina, não por mérito humano, eles foram feitos filhos. Recebemos o espírito da filiação, o Espírito Santo, que nos permite poder clamar a Deus invocando-o assim: “Abba! ”, “Pai! ”. Recordemos o Apóstolo João: “Vede que grande amor nos outorgou o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus; e nós o somos de fato! ” (1Jo 3, 1).
São Francisco, na sua “Exposição do Pai-Nosso”, diante desta invocação exclama: “Ó Santíssimo Pai nosso: criador, redentor, consolador e salvador nosso”. Normalmente, nós, movidos mais pela razão, entendemos a Trindade a partir dos seus atributos apropriados. Assim, atribuímos ao Pai o ser criador, ao Filho o ser redentor e salvador, ao Espírito Santo o ser consolador. Não está incorreto. São Francisco, porém, movido mais pelo amor, tem uma visão mais real. Juntamente com os mestres medievais dizia que a criação é obra do Tri-uno Deus. A redenção também. A santificação também. Assim, o Pai é criador, doador do ser a tudo o que é. O Pai é redentor e salvador, enviando-nos o Filho, e acolhendo, no amor, ao seu sacrifício, que, pela sua cruz, nos redimiu e nos salvou. O Pai é Deus de toda a consolação. Consolador é Ele, tanto quanto consolador é o Filho, e também o Espírito Santo. São Francisco no ensina assim a invocar ao Pai, desde a obra da criação, desde a obra da redenção e salvação, e desde a obra de nossa santificação.
O Pai do céu é origem essencial do nosso ser. Os pais humanos participam apenas do nosso devir. Certa vez, Mestre Eckhart comentou a passagem de Paulo, que diz: “unus Deus et Pater omnium” (“Um Deus e pai de todos”), dizendo, primeiro, que se Deus é um, também nós devemos ser um em nós mesmos, e ser um com Deus. Em segundo lugar, “se é nosso Pai, então somos seus filhos, e assim, tanto honra como injúria, a ele demonstradas, nos atingem o coração. Quando a criança descobre como ela é cara ao pai, sabe por que deve levar uma vida tão pura e inocente”.
O Único Pai de todos é, pois, o Pai comum: é Pai nosso. Este “é”, porém, é experimentado de modo especial na comunhão com Jesus, no seu seguimento. Esta comunhão reúne, congrega, todos os discípulos de modo muito singular, para experimentar a paternidade do Único Pai de todos, e para difundi-la por toda a humanidade, a todos os seres humanos de todos os povos, e por todo o universo. Eis a constituição, a essência, a vocação e missão da Igreja. O único Evangelho, o resumo de toda a Boa Nova, “a Alegria que enche o coração daqueles que se encontram com Cristo” (EG 1).
  1. Santificado seja o teu nome
À exclamação do “Pai!” segue a invocação “santificado seja o teu nome” (hagiasthéto tò ónoma sou). Estamos diante de um modo semítico de falar, bastante conhecido no Antigo Testamento e no judaísmo, mas, muitas vezes, estranho para nós. O nome, aqui, é o mesmo que “o ser”. Que o ser de Deus, portanto, seja santificado. Mas, como “seja santificado” se Ele é santo, ou melhor: o Santo (Kadosh, em hebraico; Hágios, em grego), o Santíssimo?
Antes que para Deus a exclamação aponta para os homens, as criaturas, isto é, que o brilho, o esplendor, de Deus se manifeste no mundo; que os homens O reconheçam, e O louvem por aquilo que Ele é. E o homem louva o Pai antes de tudo por sua vida: um louvor silencioso, mas essencial, anterior a toda a louvação que o homem possa dirigir a Deus por meio de palavras. Assim, uma obra, por ser assim como é, manifesta a alma e a arte do artista que a criou, e, nessa mesma medida, o louva. Isto quer dizer: à medida que o homem se assemelha a Deus, sim, se iguala a Ele, no modo do ser Filho, e assim, nesta mesma medida, ele louva a Deus.
Mas, “santificado seja teu nome”, por extensão, se deve aplicar também a todas as criaturas. Ou seja, esta súplica-desejo acontece quando os homens se dão conta que a beleza delas deve ser respeitada porque é reflexo Daquele que é Belo, que a bondade delas deve ser amada porque reflete a bondade Daquele que as criou, enfim, que a santidade delas deve ser seguida porque nos conduz para Aquele que é o Santo. Quando isto acontecer sentirá despertar em seu coração o desejo de louvar, bendizer e adorar o Senhor como fazia Francisco: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” (Cf. LS 87). Por isso, São Francisco parafraseando este pedido rezava: “Torne-se clara em nós a tua noção para que conheçamos qual seja a largura dos teus benefícios, o comprimento das tuas promessas, a sublimidade da majestade e a profundidade dos juízos”.
  1. Venha o teu reino
Depois, segue a invocação: “venha o teu reino” (elthéto he basileia sou). Ora, o advento do reinado de Deus anula o reinado do pecado sobre nós e em nós. O reinado de Deus, no entanto, chega a nós em Jesus Cristo: nele acontece de modo inaugural e se manifesta de modo universal. Gregório de Nissa diz que pedir “venha o teu reino” se iguala a pedir “venha o Espírito Santo”, que nos purifica, ilumina, santifica. Ele é o Amor, que é Deus. Nele e por Ele nos tornamos um com o Pai. Santo Agostinho, na mesma direção, diz que o reino de Deus nos vem quando recebemos a graça santificante do Pai em nossos corações. Afinal, Jesus disse: “O reino de Deus não vem com observação. Não se dirá: ‘ei-lo aqui’ ou ‘ei-lo ali’. Com efeito, o reino de Deus está dentro de vós” (entòs hymon). O reinado de Deus dentro de nós e entre nós se dá, pois, de modo espiritual, pela natureza, a partir da centelha divina que nos foi dada, pela graça do Espírito Santo, e, ainda pela glória definitiva. Este reinado, que já começou no tempo como graça, há de se consumar, na eternidade, como glória. É neste sentido que São Francisco comenta: “para que tu reines em nós pela graça e nos faças chegar ao teu reino onde manifesta é a visão de ti, perfeita a dileção, bem-aventurada a comunhão e sempiterna a fruição”.
Na primeira parte (verso 2), pedimos a Deus a Ele mesmo e, com Ele, os bens celestes: o Espírito Santo e sua graça em nós e nossa bem-aventurança, pela nossa participação na glória da sua eternidade. Se a primeira parte concerne à eternidade, a segunda (verso 3) concerne ao tempo. Se a primeira concerne ao céu – de modo que a nossa vida na terra se conforme e se antecipe já ao modo de ser da vida no céu – a segunda parte concerne propriamente às nossas fragilidades como seres terrenos e falíveis. Se, na primeira parte, as petições não são tanto súplicas, quanto louvores, na segunda, as petições são de fato súplicas, pedidos de auxílio, invocações ao Pai e ao seu socorro misericordioso.
  1. Dá-nos cada dia o pão de que precisamos
A terceira petição do Pai-Nosso no evangelho de Lucas (quarta em Mateus) é: “Dá-nos o pão que nos é necessário para cada dia”. Mateus diz: “Dá-nos hoje o pão de que precisamos”. Há uma dificuldade de traduzir o adjetivo que qualifica o “pão” nessa petição. O texto grego, em ambos evangelistas, usa “epioúsion”, palavra que não é encontrada em nenhum outro lugar, a não ser no Pai-Nosso. Traduz-se assim: “para o presente”, o “cotidiano”. Se este adjetivo remeter ao verbo “epeimí”, então indica “o que está advindo”, “sobrevindo”, “no imediato”, “ao que é iminente” – algo assim como um dia após o outro: o cotidiano. Nada, portanto de fazer reservas, estoques! Tanto Basílio quanto Crisóstomo entendem que, nessa petição, pedimos para a nossa vida diária aquelas coisas que são necessárias para vivermos. Não há como, aqui, segundo Agostinho, não vermos o pão super-essencial, o pão da vida eterna, que é Cristo mesmo1. E completa: “Jesus Cristo ressuscita para ti todos os dias; logo, ‘hoje’ é quando Jesus Cristo ressuscita”. Na mesma esteira vai São Francisco, quando comenta: “O pão nosso de cada dia, o teu dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, dá-nos hoje: na memória e na inteligência e na reverência do amor que teve para conosco e daquelas coisas que por nós disse, fez e sofreu”.
São Cirilo lembra que esta súplica põe o discípulo de Cristo numa condição de pobreza humilde. Ao pedir o pão ele se mostra como pobre. “Não são os ricos os que pedem pão, mas os oprimidos pela indigência”. Por outro lado, ao pedi-lo, como “pão nosso”, ele se dispõe a viver o sentido da partilha do pão comum. Bonhoeffer comenta assim: “O pão que os discípulos pedem é um pão em comum: ninguém pode tê-lo só para si”.
  1. E perdoa-nos os nossos pecados
A quarta petição em Lucas (quinta em Mateus) diz: “e perdoa-nos os nossos pecados, pois nós mesmos perdoamos a todos os que cometeram faltas contra nós”. Mateus fala em dívidas. No mundo antigo, as dívidas podiam levar à perda da liberdade. O devedor facilmente se tornava escravo. Pedimos ao Pai que perdoe as nossas dívidas, pois somos incapazes de pagá-las. Isso quer dizer: somos incapazes, a partir de nós mesmos, de nossos méritos, de reparar nossos pecados, as faltas e ofensas que cometemos contra Deus. Agostinho explica: nossa dívida para com Deus é o nosso pecado. Ele nos levou à escravidão, a nós que fomos criados livres, à imagem e semelhança de Deus. Mas Cristo pagou nossas dívidas por nós. Nos redimiu, reconquistando a liberdade e a dignidade que tínhamos perdido. Ele anulou o documento que atestava nossa dívida para com Deus, pregando-o na sua cruz. São Francisco, parafraseando esta petição, diz: “perdoa-nos as nossas dívidas: pela tua inefável misericórdia, pela virtude da paixão do teu dileto Filho e pelos méritos e pela intercessão da beatíssima Virgem e de todos os teus eleitos”.
Assim como cotidiana é a necessidade do pão, cotidiana é também a necessidade do perdão do Pai. E assim como o pão é comum, também o perdão é comum, pois comum é o pecado dos discípulos de Jesus:
Por isso, devem pedir cotidianamente o perdão a Deus. E Deus quer ouvir a súplica deles somente se eles perdoam as culpas também fraternalmente e com boa disposição recíproca. Estes, portanto, apresentam a Deus todos juntos a sua culpa e, juntos, pedem a graça. Que Deus queira perdoar não só a minha, mas a nós, a nossa culpa (Bonhoeffer).
O perdão é um dom, um agraciamento da caridade. Por isso, São Francisco, além de recordar que muitas vezes temos dificuldade de oferecer o perdão, e que precisamos nos dispor a isso pela graça do Pai, também lembra que o perdão aos irmãos se estende ao amor aos inimigos. Ele diz: “Assim como nós perdoamos aos nossos devedores: e o que não perdoamos plenamente, faz-nos Tu, Senhor, perdoar plenamente, para que, por tua causa, amemos de verdade os inimigos e por eles intercedamos devotamente junto de ti, não retribuindo nenhum mal pelo mal e nos empenhemos para, em tudo, frutificar em ti”.
  1. E não nos introduzas na tentação
A quinta petição em Lucas (sexta em Mateus) é: “e não nos introduzas na tentação”. Em Mateus o teor é igual. Santo Agostinho esclarece: pedimos para não sermos introduzidos na tentação que não podemos resistir. Não se trata, aqui, do envio das provações que são benéficas para os homens de Deus. Trata-se da tentação que é investida por Satanás para pôr a perder o homem. Deus não tenta o homem. São Tiago o diz explicitamente: “Que ninguém, quando for tentado, diga: ‘minha tentação vem de Deus’. Pois Deus é inacessível ao mal e não tenta a ninguém” (Tg 1, 13). Os discípulos conhecem em si mesmos a tendência para o mal. Sabem que “cada qual é tentado por sua própria concupiscência, que o arrasta e o seduz. Uma vez fecundada, a concupiscência dá à luz o pecado, e o pecado, tendo atingido a maturidade, gera a morte” (Tg 1, 14-15). Por isso, sabendo desta propensão para o mal que há em si mesmo, o discípulo de Jesus não pretende dar provas de suas forças, mas prefere confiar-se à misericórdia do Pai. Muitos são os gêneros de tentações dos discípulos. Por isso, São Francisco comenta: “E não nos deixes cair em tentação: oculta ou manifesta, repentina ou importuna”.
2ª parte: rezar sempre e sem cessar
  1. O amigo que importuna o amigo
A seguir, para mostrar que é preciso orar sempre e sem cessar, insistentemente, Jesus começa a apresentar exemplos e parábolas.
A primeira (5-8) fala do amigo que acaba cedendo à importunação do outro amigo. Ela mostra que Deus pode adiar o atendimento de nossa súplica, mas para o nosso bem, para excitar em nós o desejo. Além disso, se a graça vem ao homem junto com a luta, ele a valoriza mais. São Basílio recorda: tudo o que se adquire com muito trabalho, se conserva com grande empenho e afeição. É preciso, pois, perseverar na oração, nos tempos de penúria, de tribulações, de aflições, de tentação. É preciso insistir por receber de Deus os três pães. Para Teofilato os três pães são tudo aquilo que o homem necessita para a vida do seu corpo, da sua alma e do seu espírito. Já para Agostinho, são o alimento do mistério divino, da Trindade. Se aquele amigo da parábola acabou se levantando para dar ao amigo que o importunava os três pães, não por amizade, mas para se ver livre da chateação, quanto mais Deus, que é generoso, que se compraz em dar os seus dons com largueza, dará aos seus amigos os três pães que eles lhe pedem.
  1. Pedir, procurar e bater
Por fim, Jesus apresenta aos discípulos uma exortação a pedir, a buscar, a chamar à porta. “Pois bem, eu vos digo” é o modo de falar da seriedade de um juramento. Revela, portanto, a pequenez inexcusável de nossa fé. “Pedi, e ser-vos-á dado, procurai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. De fato, todo o que pede recebe, quem procura encontra, e a quem bate se abrirá”. Um autor antigo de Antioquia dizia: o pedir se dá pela oração; a busca, pelas boas obras em harmonia com a oração; o chamar à porta, pela perseverança. Santo Agostinho nos adverte: Deus não nos convidaria a pedir se não quisesse nos dar. Aliás, Deus é mais disposto a nos dar os seus dons, do que nós a pedir e a receber. Deus como que pede, suplica, que nós peçamos a ele, supliquemos a ele, os seus dons. Mas, sobretudo, Deus quer se dar a si mesmo a nós.
Entretanto, é preciso pedir com reta intenção, como nos adverte São Tiago: “pedis e não recebeis porque vossos pedidos não visam a nada melhor do que gastar para vossos prazeres” (Tg 4, 3). Os homens, muitas vezes, pedem a Deus pedra, e não pão; serpente, e não peixe; escorpião, e não ovo. Por amor deles, isso Deus não concede. Contudo, o Pai quer nos dar o que há de bom, de benéfico, de salutar para nós. Deus nos ama muito mais do que os pais carnais amam os seus filhos. “Que pai entre vós, se o filho lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente em lugar de um peixe? Ou ainda se ele pede um ovo, dar-lhe-á um escorpião? Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do céu dará o Espírito Santo aos que lhe pedem”. Na leitura alegórica de Agostinho, o pão é a caridade; a pedra, a dureza de coração; o peixe é a , que leva o homem a ver o invisível; a serpente, é o veneno do mal e do Maligno; o ovo, é a esperança que se incuba; o escorpião é o caráter traidor do mundo, que, como o escorpião, tem o seu ferrão na cauda, isto é, obriga o homem a olhar sempre para trás, para o passado, em vez de olhar para o futuro, motivado pela esperança. Os homens são maus. Isto é: são propensos para tudo que é ruindade. Mesmo assim, para os seus filhos, eles sabem dar coisas boas. Quanto mais o Pai celeste, que é o “único bom”, o “sumo Bem”, saberá dar “o Espírito Santo” aos que o pedirem. O Espírito Santo é a graça fontal. É o dom dos dons. É a plenitude dos dons de Deus. No Espírito Santo, a Trindade toda, o Tri-uno Deus, sumamente bom, se nos doa a si mesmo. É preciso, pois, aspirar ao e pedir, acima de tudo, como ensinava São Francisco, o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar. Recendo-o, recebemos a Deus mesmo, e nos tornamos um com ele, um com o Um, um no Um, um como o Um.
Conclusão
Para Francisco, o “Pai Nosso” era a oração do “seu Senhor”, do “seu Tudo”. Por isso o estabeleceu como “Ofício Divino” para os frades que não soubessem ler ou estivessem impossibilitados de recitar o Ofício da Igreja. Além do mais, desde que diante do bispo exclamara: “a partir de hoje não direi mais ´meu pai Pedro Bernardone´, mas ´Pai nosso que estais no Céu´”, “parecia ter voltado ao primitivo estado de inocência original pois nascera em seu coração o paraíso” (São Boaventura). Por isso, também, no fim da vida não era mais apenas um orante, mas a própria oração (Cf 2C 95).
Fraternalmente,
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini



1 No adjetivo “epioúsion” ressoa a palavra “ousía”. Traduz-se, usualmente, a palavra grega ousía por substantia em latim (substância). Agostinho interpreta, assim, este adjetivo como significando “supersubstantialis” (super-substancial).