Quarta-feira de cinzas
10/02/2916
Liturgia da Palavra: Joel 2,
12-18; Sl 50 (51); 2 Cor 5, 20 —6,2; Mt 6, 1-6.16-18
Tema:
Quaresma: Tempo de penitência, de conversão
Mensagem:
“Voltai para mim com todo o coração”, diz o Senhor
Imagem:
Cartaz da campanha da Fraternidade
Introdução:
O sentido da Quaresma
Desde
o século IV, os cristãos adotaram o costume de preparar a festa
anual da Páscoa com uma quaresma (Quadragesima),
isto é, com quarenta dias de penitência, que imitam os quarenta
dias de jejum que Cristo observou antes de iniciar sua vida pública.
Por isso, desde sua origem, esse tempo vem caracterizado,
essencialmente por um forte convite à penitência evangélica, uma
penitência interior e exterior, individual e social, pessoal e
comunitária. É dentro deste espírito que se criou, no Brasil, a
Campanha da Fraternidade. Este ano a Campanha é ecumênica e o tema
é ecológico: “Casa comum, nossa responsabilidade”. Já o lema
é: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual
riacho que não seca” (Am 5, 24) ”.
Neste
sentido, segundo Karl Rahner, precisamos, hoje de uma “revolução
copernicana” na piedade moderna, isto é, perceber e experimentar
que “o dia-a-dia de nossa vida está repleto de Deus e de sua
graça”. A partir do Vaticano II o centro da vida cristã – o que
vale dizer da vida de Cristo vivida num e por um cristão - se
deslocou do templo, da igreja e da própria religião para as
realidades humanas e sua história. Isso significa que hoje, não se
pode mais ser cristão sem converter-se também para os irmãos e
irmãs e todas as criaturas de nossa Casa comum, principalmente as
mais injustiçadas, debilitadas e sofredoras.
Quem
compreendeu bem a importância da penitência evangélica e da
Quaresma foi São Francisco. Chegou a definir a vida cristã como
“vida de penitência” (Testamento) e o grupo de irmãos reunidos
ao seu redor de “penitentes”: os “Penitentes de Assis”.
Estimava tanto essa penitência que chegava a fazer cinco quaresmas
por ano. Foi numa dessas – a de São Miguel - que teve a graça de
receber no próprio corpo os sagrados estigmas do seu Senhor.
-
Voltai para mim com todo o coração
O
caráter penitencial da vida não foi uma invenção de Jesus. Os
judeus já conheciam os dias de jejum e penitência, principalmente
em tempos de calamidades e decadências religiosas. Muitos eram os
sinais desse espírito e dessa busca: rasgar as vestes, vestir-se de
sacos, cobrir-se de cinzas e entoar lamentações nacionais. Os
profetas, porém, insistiam para que todos esses gestos viessem da
interioridade sincera de um coração contrito e humilde: “Rasgai
o vosso coração e não os vossos vestidos” (Joel
2, 13a). Neste sentido, quem se volta inteiramente para Deus como o
seu único e verdadeiro Senhor, não precisa de mais nada e de mais
ninguém. Sua conversão virá acompanhada também da necessidade de
um despojamento radical.
O
Novo Testamento expressou o retorno para Deus com o clássico verbo
“metanoein”,
que tem o sentido de mudar de mente (nous)1,
de revolucionar o próprio pensamento, de adotar outro modo de pensar
e de sentir. A virada se dá, aqui, no interior do homem. A tradição
tem vários modos de chamar este interior invisível, âmago velado:
ápice de sua mente (Boaventura), fundo da alma (Eckhart), coração
(Bíblia/Pascal). Quer dizer que aquilo que o homem tem de mais nobre
em seu ser sofre uma guinada para Deus e, com isso, todo o seu ser,
sua inteira existência, vira de volta para Deus. Daí a insistência
de Jesus: “convertei-vos e crede no Evangelho”. Em Jesus, porém,
a conversão está sob a égide não da severidade e da ameaça da
Lei, mas da alegria do Evangelho, isto é, da presença do próprio
Deus: o Deus-conosco. Por isso o arrependimento e a conversão, em
Jesus, mais do que uma questão de remorso e de temor servil
(attritio)2
é uma questão de um pesar amoroso e de uma veneração filial
(contritio)3.
O cristão não ama a Deus porque o teme, mas se o teme é porque O
ama (S. Francisco de Sales).
-
Eis o tempo favorável
A
Quaresma, porém, antes de um tempo de quarenta dias é um sinal de
que toda a vida deve ser vivida em espírito de penitência
evangélica. É por isso que São Paulo convida os cristãos:
«Reconciliai-vos com Deus. Este é o tempo favorável». Para Paulo,
a penitência, a conversão, o retorno do homem para Deus, é um
renascimento. É morrer com Cristo, para ressuscitar com Ele, e,
assim, tornar-se uma “nova criatura”: “se alguém está em
Cristo, é uma nova criatura. O mundo antigo passou, eis que aí está
uma nova realidade” (2 Cor 5, 17), diz ele no mesmo contexto da
segunda leitura de hoje.
-
O Pai que vê o que está oculto será tua recompensa
Como
para os antigos profetas, também para Jesus o centro da penitência
é o esforço de abrir-se para o Senhor que vem ao nosso encontro no
outro que está ao nosso lado para que nós lhe lavemos os pés. Por
isso em seu famoso Sermão da Montanha não diz que
o homem deve praticar a esmola, a oração e o jejum – obras que
todo homem deve fazer por ser homem -, mas como
deve fazê-lo, isto é, de modo limpo, humilde, isento de qualquer
outra intenção senão o puro bem-querer, sem nenhum “porquê”,
nem “para quê”. Qualquer outra busca que não seja abrir-se para
o Pai “que vê no segredo”, vem do mal da vanglória.
Por
isso, Nosso Senhor, com as indicações da perícope evangélica de
hoje, quer matar este mal pela raiz – eliminando-o no seu
nascedouro: no desejo de aparecer e de parecer bom, de parecer justo,
aos olhos dos outros e de si mesmo – o que Jesus chama de
“hipocrisia”. Hipócrita é aquele que simula, que finge: que
quer aparecer e parecer como aquilo que ele, no fundo e na verdade,
não é. O contrário da hipocrisia e da vanglória é a humildade:
quando o homem aparece na verdade daquilo que ele é diante de Deus.
Assim,
a Quaresma é um tempo, uma caminhada que nos leva a reconhecer e a
aprender uma lição que devemos seguir todos os dias, em tudo e com
todos: que todo o bem e todo o carisma provém de Deus e que, por
conseguinte, de tudo o que temos ou somos de nada podemos
gloriar-nos. Por isso, tornou-se praxe na abertura da Quaresma
recordar ao cristão os três grandes exercícios penitenciais da
tradição cristã: a esmola, o jejum e a oração.
A
oração porque nos leva a libertar-nos de nós mesmos e a abrir-nos
para Deus. O jejum porque nos liberta da busca da autossatisfação
piedosa e nos coloca no seguimento de Cristo pobre e crucificado; um
seguimento no qual o mais importante não é a aceitação do
sofrimento que nós mesmos nos impomos, mas que vem gratuitamente dos
outros ou dos acontecimentos da vida. O mesmo diga-se da esmola que
deve ser feita gratuitamente ao ponto de a mão esquerda não saber o
que faz a direita.
Há
em cada um desses três exercícios um único e mesmo espírito: o
despojamento do centralismo do eu da própria subjetividade. Assim,
aos poucos o fiel não dirá mais ”eu sei”, mas o Senhor sabe,
“eu faço”, mas o Senhor faz, “eu quero”, mas o Senhor quer,
“eu posso”, mas o Senhor pode.
Conclusão
A
exemplo de Jesus e Francisco que se retiravam do público para
estarem bem próximos da fonte que é o Pai e assim poderem estar
também bem unidos e próximos dos homens e das criaturas acolhamos
mais esta Quaresma com muita gratidão e alegria.
Marcos
Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini.
1
A palavra “nous” vem da raiz “snu”, que tem a
ver com farejar. Quer dizer: ter o sentido dirigido a. “Nous”
significa, assim, a percepção espiritual, a apreensão intelectual
do sentido de ser, o pensamento, portanto. Os medievais traduzem ora
por “mens” (mente), ora por “intellectus”. É
a disposição receptiva à manifestação do ser, à verdade.
“Nous” diz, também, “insight”, vislumbre das
possibilidades de ser, inventividade, portanto. Também tem a ver
com a consciência (syneidesis), isto é, com o saber de si
por parte do homem no tocante à sua orientação total na vida.
Pode ser, portanto, teorético ou prático. É o mais elevado no
homem, o mais nobre, o divino no homem. Equivale ao que a Bíblia
chama de “kardía” (coração): o centro pessoal do
homem, para onde converge todo o seu viver, e de onde emana todos os
seus pensamentos, suas palavras e ações.
2
Arrependimento imperfeito.
3
Arrependimento perfeito.
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