16º Domingo do Tempo Comum
Pistas homiléticas
17/07/2016
Liturgia da Palavra: Gn
18, 1-10ª; Sl
14; Cl.
1, 24-28; Lc
10, 38-42
Tema-mensagem: Da hospitalidade
como concreção do amor
Sentimento:
Alegria de ser hospedeiro do divino
Introdução:
No
domingo passado celebramos o amor a Deus e ao próximo como o maior,
o primeiro e único mandamento e como o único caminho da vida
eterna. Hoje, através, principalmente, da 1ª leitura, do salmo e do
Evangelho, celebramos a floração ou concreção maior deste
mandamento e da vida eterna: a alegria da hospitalidade divina.
-
Os três misteriosos peregrinos, acolhidos por Abraão
A
primeira leitura de hoje nos relata como “o Senhor apareceu a
Abraão nos carvalhos de Mamrê, quando ele estava sentado à entrada
da tenda em pleno calor do dia” (Gn 18, 1). Uma singularidade deste
texto é que se fala ora de “três homens”, ora como se os três
fossem um. Assim, Abraão se prostra diante dos três e diz: “Meu
Senhor, se pude encontrar graça a teus olhos, digna-te não passar
longe do teu servo”. E Abraão se desdobrou em múltiplos cuidados
e alegria para receber em sua tenda aqueles três homens misteriosos,
ou, se quisermos, o seu “Senhor”.
É
proverbial a hospitalidade dos povos nômades. Aqui, a hospitalidade
permite-lhe receber anjos, isto é, enviados do Mistério, ou, ainda,
mensageiros do Senhor. Mais ainda: a hospitalidade lhe permite
acolher, neles e com eles, o próprio Senhor. Com efeito, o Senhor
lhe vem ao encontro, acompanhado de duas figuras angélicas. Desta
visita divina, acolhida com um generoso e concreto ato de fé,
resultou para Abraão a promessa de que, no ano seguinte, no “tempo
da vida” (chuvas de outono? Primavera?), Sara, a estéril, daria à
luz um filho, a quem Abraão poria o nome de Isaac.
Os
padres da Igreja, entre eles Eusébio de Cesareia (séc. IV), falam
de uma imagem que apresentava a visita dos três homens a Abraão
como sendo uma figuração do mistério trinitário. No século XV,
um monge russo, Andrei Rublev, fez um ícone da ceia destes Três,
celebrando o mistério da Trindade. O ícone da hospitalidade de
Abraão se torna, então, o ícone da Trindade. Três Anjos ceiam
junto ao carvalho que aparece ao fundo perto de uma casa e de uma
montanha. Abraão e Sara não aparecem. No primeiro plano, mostram-se
os divinos hóspedes reunidos na ceia. Do mais cotidiano do
cotidiano, do mais ordinário do ordinário emerge o evento
extraordinário. É este evento extraordinário que se põe em
primeiro plano. Ele emerge no círculo da eternidade que envolve os
Três divinos hóspedes em comunhão. O brilho dourado do mistério
divino envolve a tudo e todos. É a glória de Deus que resplende.
Uma atmosfera de descanso, isto é, de repouso e de serenidade se
deixa transparecer. No centro, está um cálice, com a carne do
vitelo, o animal jovem, que fora sacrificado, e ofertado aos divinos
hóspedes, evocando, assim, a encarnação e a paixão de Jesus
Cristo – o Cordeiro imolado - que está no centro dos desígnios
misteriosos da Trindade na história da salvação. Os três aparecem
como três seres alados. As asas são o poder do espírito.
Eles
são bem semelhantes uns aos outros, o que evoca a
consubstancialidade dos Três: eles são não somente unidos, eles
são uma única coisa e o mesmo. Os Três peregrinos carregam, cada
um, um báculo, símbolo de sua regência. O carvalho, por sua vez
nos remete à cruz, árvore da vida, a montanha, à revelação e a
casa à Igreja, habitação do espírito. Seus olhares não se voltam
para quem contempla o ícone, como costuma acontecer, mas se voltam
uns para os outros, na circularidade de uma comunhão (comum-união:
koinonía)
perfeita.
-
Uma mulher de nome Marta, alegre e graciosa recebe o Senhor
O
cultivo da mensagem evangélica acerca da hospitalidade é uma das
marcas do evangelista Lucas. No evangelho de hoje, Jesus, a caminho
de Jerusalém, recebe hospitalidade em Betânia: “Estando eles a
caminho, Jesus entrou em uma aldeia, e uma mulher chamada Marta o
recebeu em casa” (Lc 10, 38). O Senhor se fez peregrino e viandante
por nós neste mundo. Quis precisar da acolhida dos seres humanos.
Renova-se, assim, aqui, a tônica de toda a História da salvação:
Deus procurando quem o acolhe, para, por fim, tornar-lhes seus
hóspedes, e assim marcar sua presença e ser um Deus-conosco.
Agostinho, admirando, diz: a serva recebe o Senhor; a enferma, o
Salvador; a criatura, o Criador!
Mestre
Eckhart, no sermão alemão II, fazendo uma leitura mística deste
texto, frisa duas coisas neste versículo. A primeira, é que Marta,
que recebe o Senhor, é chamada de “mulher” (gyné);
a segunda, é que Jesus entrou num “burgosinho” (kômé).
Marta
era, primeiramente, no dizer do evangelho, uma “mulher”. Eckhart
lê assim: “uma virgem que era uma mulher”. Jesus, diz ele, é
virginal e livre. Assim, para recebê-lo, é preciso que o espírito
humano seja igualmente virginal e livre. Então, Jesus – virgem e
livre - pode ser recebido por Marta - “virgem e mulher”.
O
espírito do homem é virginal e livre quando serve como Marta:
expedita, ágil, desenvolta, desembaraçada e desimpedida. Este modo
de ser se concretiza como “doação e recepção no amor”,
chamado, também de virginal e livre. Indica, portanto, o modo de ser
da “fonte da vida, sempre prestes a ser doação-mãe” (Harada).
Além
de “virgem”, Marta, igualmente e ao mesmo tempo, era “mulher”.
O espírito humano é mulher quando é fecundo, isto é, quando gera:
“ ‘mulher’ é o nome, o mais nobre que se possa atribuir à
alma, e é muito mais nobre do que ‘moça-virgem’”, diz
Eckhart. “Mulher” é o espírito humano quando deixa Deus gerar
em si o seu Filho, como Maria, a mãe do Senhor. É ainda “mulher”
quando, pela gratidão e pelo desprendimento da vontade própria,
gera o “Filho” de volta, em Deus.
-
Jesus entrou num burgosinho
A
segunda coisa que o mestre renano frisa é que Jesus entrou num lugar
que era um “burgosinho” (povoadinho). Numa leitura
anagógico-mística, o que é este “burgosinho”? A tradição
bíblica chama de “coração”. São Paulo e Agostinho chamam de
“homem interior” ou “homem novo” e São Boaventura de “ápice
da mente”. Já Mestre Eckhart chama de “fundo da alma”. Todos
estão falando da mesma realidade: o centro, a origem, o cume, o mais
fundo do ser do homem, a fonte da vida na qual e da qual o Pai eterno
gera sem cessar o seu eterno Filho. Esse “burgosinho” é, pois, a
essência una e simples do espírito humano, na qual ele pode se
tornar um com o único necessário, isto é, com o Um, que é Deus
mesmo.
-
Marta a discípula madura e consumada; Maria a discípula noviça, principiante.
A
mulher Marta, que acolhe Jesus, tinha uma irmã, Maria que, “tendo-se
assentado aos pés do Senhor, escutava a sua palavra” (Lc 10, 39).
O estar sentado aos pés de Jesus significa, aqui, uma atitude
discipular (cfr. também Lc 8, 35). Maria, tendo entrado no
discipulado de Jesus, está inteiramente concentrada nestas atitudes:
silenciar e ouvir.
Há
uma diferença, porém, entre Maria e Marta. Maria é uma menina,
poderíamos dizer, uma noviça, no discipulado de Jesus. Marta é
mulher experimentada, curtida na experiência e no saber da
experiência, que só o tempo, como maturação, pode trazer. Marta
era a “dona da casa”. Maria é a sua irmã, a caçula, talvez
ainda um pouco mimada nas coisas espirituais. Marta, diz Eckhart, é
a mulher madura: “uma virgem que era uma mulher”, isto é um
espírito humano amadurecido no seguimento de Cristo, no
desprendimento virginal e livre, e na recepção que se torna doação
amorosa, operosa, fecunda.
Se,
na interpretação corrente entre os Padres da Igreja, Maria era a
imagem da “vida contemplativa” e Marta a da “vida ativa”, na
leitura de Eckhart, Maria
era a imagem do espírito humano que
se inicia na via unitiva com
Deus e Marta
era a imagem do mesmo espírito
que perfaz e consuma o amadurecimento
nesta mesma via de tornar-se uma só coisa com o Único necessário:
o “Cristo amado”. Maria, ao receber Jesus, estava absorta numa
satisfação ainda vital, isto é, anímico-sensível. Marta, porém,
fruía de uma satisfação espiritual, isto é, de alguém que havia
alcançado o “topo de sua alma” e estava elevado acima de toda
criatura e unido a Deus, graças à sua receptividade1.
Marta,
então, parece queixar-se com o Senhor: “Senhor, não te importa
que a minha irmã me tenha deixado sozinha a servir? Dize-lhe, pois,
que me ajude” (Lc 10, 40). Eckhart elucida, dizendo que Marta não
disse isso por ódio, mas por amor, ou melhor, por um bem-querer: uma
“repreensão amorosa”. Marta, já amadurecida temia que a irmã
mais nova permanecesse sentada aos pés do Mestre mais por prazer
sensível do que por satisfação espiritual. Por isso, ela solicita
a Jesus que lhe mande levantar-se, erguer-se, deixando este nível de
satisfação sensível e passando para a satisfação espiritual que
vem da unidade com Deus, no “fundo da alma”.
Seguiu-se,
então, a resposta de Jesus: “Marta, Marta, tu és cuidadosa
(merimnas),
estás aflita por muitas coisas (perí
pollá). Uma só coisa é a
necessária! Maria escolheu a melhor parte, que jamais poderá
ser-lhe tirada” (Lc 10, 41-42). Há que se notar, primeiramente,
que Jesus chama a Marta pelo nome duas vezes: “Marta, Marta”!
Essa repetição é, diz Agostinho, sinal de amor, de dileção. Seu
nome, afinal, estava inscrito no céu. Melhor: estava escrito no
“livro da vida”, que é o próprio Deus, a Trindade una, simples,
indivisível, do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Eckhart
considera que este duplo chamado tem mais um significado: que Marta
possuía o que era necessário para as obras temporais e também o
que era necessário para a bem-aventurança eterna. Nela, não havia
dicotomia entre o exterior e o interior, entre o tempo e a
eternidade, entre o profano e o sacro, entre a ação e a
contemplação. Ela estava na unidade simples, que é anterior a toda
a dualidade. São como que duas Martas unidas numa só. Assim, em vez
de estar repreendendo Marta, Jesus está convocando-a para que se
mantenha firme na conquista desta unidade e liberdade interior que a
fazem estar cuidadosa junto das coisas sem se se sentir presa a elas.
Assim seu agir é simples e, por isso mesmo, é muito mais eficaz.
Esse parece ser o sentido de “uma só coisa é necessária”
(henós dè estin chreia):
um sim à unidade e um não à dualidade.
Assim,
para o espírito humano, o único necessário é ser um com o Um. Ou
melhor: o único necessário é aquele Um, aquele Único, que é Deus
e que levava Francisco a exclamar: “Meu Deus e Tudo”.
-
Oração-contemplação-obediência-ação
Segundo mestre Eckhart, Marta e Maria não
devem ser entendidas como oposição, dicotomia ou equilíbrio entre
contemplação e ação, mas como convocação para a escuta, a
acolhida, a obediência do Único necessário, essência do
seguimento de Cristo e da contemplação. Era nesta ob-audiência ao
Pai (Cruz) que Jesus estava a caminho de Jerusalém. Era nela que
Marta o recebeu em sua casa. Era para este caminho que estava sendo
aviada e iniciada Maria. Que seja dado, pois, também a nós estar no
mesmo caminho, e, assim, chegar ao lar: os Três, que são Um, no
círculo da eternidade. Que possamos ser Um com este Um: o Único
necessário, o “Meu Deus e Tudo”.
Conclusão
O
Papa Francisco hoje nos fala de uma igreja que seja acolhedora e que,
num mundo cheio de gente ferida e sofrida, prófuga e apátrida,
carente de misericórdia, seja algo assim como um “hospital de
campanha”: um lugar de acolhimento dos que sucumbem no combate da
vida. Tornar-se sempre mais e de novo gracioso acolhedor de tudo e de
todos a modo de Abrão, Marta e Maria.
Ao
mesmo tempo, o Papa tem insistido na mudança de atitude e de
mentalidade dos assim chamados povos cristãos, em relação aos
prófugos, aos refugiados, aos imigrantes, enquanto muitos, em nome
justamente da “cristandade”, insistem em criar barreiras contra
estes. Um gesto profético foi a acolhida de uma família muçulmana
no próprio vaticano! Com isso, ele está chamando a atenção para o
essencial do evangelho de Cristo: a identidade do “amai-vos uns aos
outros como eu vos amei”. Acolher a tudo e a todos assim se
identifica com acolher o Senhor, o “Cristo amado”, enfim, os
Três, que são Um: o Único necessário.
Fraternalmente,
Marcos
Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini
Informações:
dorvalinofassini@gmail.com
1
Seu serviço hospitaleiro fluía da alegria espiritual de receber o
divino hóspede: o Cristo amado. Alegria espiritual é aquela que
não é baseada na sensibilidade, ou seja, no prazer sensível, no
sentir anímico, carnal, egoísta, mas na receptividade da mente
pensante e na espontaneidade da boa vontade, que brotam do fundo da
alma. Aqui o sentir não é excluído, mas elevado a um outro nível,
espiritual, como receptividade e espontaneidade da liberdade que vem
do fundo da alma. Convém evocar, aqui, a diferença que fazia Paulo
entre o “homem psíquico” (anímico, carnal ou exterior) e o
“homem pneumático” (espiritual ou interior). Hoje, para nós, é
difícil perceber a diferença entre estes níveis da constituição
do humano no homem. A diferença, por exemplo, entre prazer carnal e
alegria espiritual quase desapareceu, no nivelamento da alma que se
operou em nossa cultura, normalmente fundada num subjetivismo
unidimensional.
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