CORPUS CHRISTI
20/05/2016
Liturgia da Palavra:
Gn
14, 18-20; Sl
110 (109; 1Cor
11, 23-26; Lc
9,11b-17.
Mensagem-Tema:
Eu sou o Pão vivo descido do céu! Quem comer deste pão viverá
eternamente.
Sentimento:
adoração profunda e humilde
Imagem:
Última Ceia
Introdução
Outrora, multidões corriam atrás
de Jesus, muitos por causa do pão material. Milhares e milhares de
fiéis saem hoje às ruas para expressar jubilosa e publicamente sua
gratidão ao mistério maior e mais profundo de nossa fé, conhecido
como “Corpus Christi” (Corpo de Deus).
- Um Deus que é Rei — Sacerdote-Sacrifício
A
primeira toada acerca do sentido da solenidade de hoje vem da
primeira leitura, do livro do Gênesis. Abrão havia terminado e
vencido a guerra com os povos vizinhos. Era hora de refazer e buscar
uma paz duradoura. Surge, então, uma figura misteriosa com um gesto
também misterioso. “Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e
vinho e como sacerdote do Deus Altíssimo, abençoou Abrão...”.
Após o sacrifício, Abrão entregou-lhe o dízimo de tudo. Estava,
assim, selada e restabelecida a Paz e a convivência não apenas
entre Abrão e os povos vizinhos, mas também entre estes com Deus e
vice-versa.
Na
Carta aos Hebreus, Melquisedec é tomado como uma prefiguração de
Cristo rei-sacerdote e o salmo 109 (110), que entoamos na liturgia de
hoje, diz: “Tu és
sacerdote para a eternidade segundo a ordem de Melquisedec”
(v. 4). Jesus Cristo aparece, assim, como o rei-sacerdote que
oferece, neste caso, o seu próprio corpo e sangue como sacrifício,
tornando-se assim, além de rei e sacerdote, também a própria
oferenda, o sacrifício. Ao consumar o seu sacrifício na Cruz,
Cristo consumou-se a si mesmo, bem como a grande obra da pacificação
dos homens entre si e destes com Deus – a salvação universal. É
o seu famoso: “Consumatum
est” (Tudo está
consumado) (cfr. Jo 19,30).
- Pão e Vinho
A oferenda do rei-sacerdote
Melquisedec é pão e
vinho. O pão
é alimento elementar, essencial, no cotidiano. Indica o necessário,
o imprescindível, para a vida do homem. É evidente, aqui, um
prenúncio do “Pão da Vida”, o pão eucarístico, o alimento
espiritual do cristão.
O
trigo transformado em pão é certamente um dos simbolismos mais
expressivos do mistério salvador que Deus realiza em nós através
de Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo Rei, sacerdote e Sacrifício.
Isto é inédito! Nunca em outras religiões, o rei e o sacerdote se
fazem a vítima ou o sacrifício pelo seu povo. É sempre o
contrário: o povo é sacrificado pelo e para seu rei, pelo ou para
seu deus. Por isso, com razão, Jesus que se encarna e se deixa
triturar em sua vontade própria até a morte e morte de Cruz para
fazer a vontade do Pai e que, após sua Ressurreição, assume a
forma de pão comível e de vinho bebível é chamado com razão de
“Pão vivo e verdadeiro descido do Céu”, o “Pão nosso de cada
dia”.
À
simbologia do trigo, da farinha e do pão se acrescenta a do fermento
que, neste caso, é ambígua. Se, por um lado significa a
transformação espiritual, por outro lado, por provir da putrefação,
pode significar também a corrupção. Por isso, dizia Jesus aos
discípulos: “Cuidai-vos do fermento dos fariseus! ”. Paulo,
aproveitando deste significado do fermento, lembra aos discípulos de
Cristo – os cristãos – que devem ser massa sem fermento (1 Cor.
5, 7); que precisam se tornar o que são (Rm 6, 11-12; Cl 3, 3-5):
“pães sem fermento”, isto é, íntegros, inteiros, simples, sem
nenhuma corrupção no seguimento de Cristo, na vida nova que ele
inaugurou com sua morte sacrifical.
Semelhante
ao pão, também a simbologia do vinho elaborado pelo esmagamento da
uva originada da videira, nos transporta para realidades que são a
raiz, o fundo de nossa existência. A primeira e mais significativa
de todas é o amor. Assim como o vinho é, por assim dizer, o sangue
da uva, o Amor que é Deus, que é Jesus Cristo tudo suporta, carrega
e sustenta; um Amor-Doação, amor de profunda e mútua entrega,
semelhante ao amor dos esposos, capaz de levar a sair de si,
desprendendo-se de tudo para elevar até o mais alto êxtase, como se
pode ver em alguns místicos. São Francisco, por exemplo, movido
pela dulcíssima melodia deste amor, costumava tomar nas mãos dois
gravetos e, como se fossem violinos (Cf. 2C 127), fazia ressoar a
música da criação, tão bem decantada, depois, no Cântico do
Irmão Sol.
Para
os antigos, pão e vinho eram símbolos, também e respectivamente,
da vida ativa e da vida contemplativa, dos pequenos e dos grandes
mistérios. Assim, o milagre da multiplicação dos pães impressiona
pela quantidade, isto é, a superabundância dos pães; já o milagre
da transformação da água em vinho em Caná da Galileia,
impressiona pela qualidade, isto é, pelo sabor excelente do vinho
“melhor”. Cristo, no Novo Testamento, apresenta-se tanto como o
Pão da Vida, o Pão do Céu (cfr. Jo 6), dimensão ativa, quanto
como a verdadeira Videira (Jo 15, 1-5), dimensão contemplativa.
- Tomai e comei, isto é o meu corpo, tomai e bebei, isto é o meu sangue
Nunca
é demais insistir, como o faz São Paulo, hoje em sua carta, que
Cristo entregou o memorial de sua Paixão, em forma de ceia, dizendo
“Tomai e comei, isto é meu Corpo, tomai e bebei, isto é meu
sangue”. Isto é muito forte, quase não dá para acreditar! Deus
se fazendo pão e vinho (“coisa”, “matéria”) e pedindo para
que nós o comamos e o tomemos! Ele não diz: “Olhai, para mim, eu
sou um espírito, me contemplai, me adorai! ”. Romano Guardini
atentava para o fato de que, antes de uma devoção religiosa, a
Eucaristia é ação
sacra em que o evento da Cruz, que foi antecipado e prenunciado na
última Ceia, atua em seu vigor e em sua vigência. Eucaristia não é
representação, encenação, simbolização, mas a própria
realidade, a Pessoa mesma de Cristo se doando, sempre e de novo, na
Cruz.
Por
isso, São Francisco costumava contemplar a vinda de Cristo na
Eucaristia como uma atualização da vinda de Cristo na encarnação,
recordando-nos que todos
os dias (Ele) se humilha descendo do seio do Pai sobre o altar nas
mãos do sacerdote, a
fim de ser Deus-conosco
até o fim dos séculos (Ad
I). Neste sentido também se expressava São João Crisóstomo:
Ó
tremendo mistério! Ó inefável desígnio do divino conselho! Ó
inefável bondade! O Criador se oferta como alimento à criatura, a
própria vida se oferece aos mortais como comida e bebida.
A
Sequência da missa de hoje expressa a maravilha da Igreja ante este
mistério (sacramento). O Pão dos anjos se fez Pão dos homens. É o
mesmo que canta o famoso canto “Panis
Angelicus”, que é a
penúltima estrofe do hino "Sacris
solemniis",
escrito por São Tomás de Aquino para a Festa de Corpus
Christi:
Panis Angélicus, (O Pão dos
Anjos)
Fit panis hominum, (Se faz Pão
dos homens)
Dat panis cœlicus figuris
terminum. (O
Pão do céu põe fim às prefigurações)
O Res mirabilis! (Ó coisa
admirável)
Manducat Dominum, (consome a
Deus)
Pauper, pauper servus et humilis!
(O Pobre, pobre, o servo e humilde).
A solenidade de hoje, se
caracteriza, também, como um ato de grande e profunda adoração.
Adoração, porém, não como quem se coloca diante de uma realidade
fixa, estática ou quase física, mas, antes como quem vê Deus “se
matando”, se desdobrando em mil e uma forma para poder ser recebido
e assim poder estabelecer conosco um ”sacrum
convivium”. Daí a
necessidade de também nós respondermos a tão inaudita iniciativa,
pelo menos com o desejo de adorá-lo com um profundo ato de fé, isto
é, crendo que é assim que Ele quis e quer “estar sempre conosco,
até a consumação dos séculos (Mt 8,26). Aliás “adorar’,
significa, justamente, o ato de “levar à boca” aquilo que se ama
ou do que se necessita como, por exemplo, o alimento, ou como a
criança que leva à boca o seio da mãe afim de sugar-lhe o leite da
vida, ou melhor ainda, como os amantes trocam o beijo do mistério do
amor que lhes feriu o coração e dá o sentido de sua vida.
- A superabundância do Pão
Além
do mais, Corpus Christi, principalmente, através do Evangelho de
hoje, ajuda-nos a contemplar o rosto misericordioso do Pai que se
revela em Jesus que, além de acolher as multidões, fala-lhes do
Reino de Deus, cura-lhes as enfermidades e sacia-lhes a fome com o
famoso milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Este
milagre, porém, é antecedido por outro, não menos significativo: a
transformação das multidões (hoi
óchloi) em povo
(laós).
“Fazei que se instalem em grupos de cinquenta”, comanda ele.
Povo,
mais do que uma simples multidão, mais do que mera sociedade
organizada, é uma comunhão de comunidades, animadas por um
único e mesmo espírito:
uma “Comunidade de Comunidades”, como nos pede a CNBB, hoje. Das
multidões que o seguiam, Jesus fará surgir, graças ao ministério
dos Apóstolos, um Povo, a Igreja, isto é, a Assembleia (Ekklesia)
dos chamados ao seu discipulado; Povo ao qual, mediante o ministério
dos sucessores dos Apóstolos, Ele irá alimentar, pelos séculos
afora, com o pão de sua Palavra e com o Pão do seu próprio Corpo.
O
milagre da multiplicação dos pães e dos peixes – como a
Eucaristia – são sinais, sacramentos de outro milagre, de outra
multiplicação, de outra “ação graciosa” que está sempre
acontecendo, desde a Criação quando Deus abençoou a terra para
produzir alimentos, e abençoou os mananciais de água doce e os
mares, para multiplicar os peixes. Assim, através da Eucaristia,
caem de nossos olhos as escamas, é tirado de nossos corações o
peso da banalidade das coisas do nosso cotidiano a fim vermos a
multiplicação dos pães e dos peixes com a qual somos agraciados a
toda hora e todos os dias desde a Criação do mundo.
O
relato deste milagre vem recheado de simbolismos. Os doze cestos
recordam os doze Apóstolos, a partir de cujos ministérios se
constituiria o novo Povo de Deus, a Igreja de Cristo. Beda, o
venerável, lê o declinar do sol como o fim dos tempos, que foram
decretados com a morte de Cristo. Nos cinco pães vê o sinal da
Torah que, por meio dos cinco livros o povo da Antiga Aliança foi
saciado com a Palavra de Deus. Afinal, “nem só de pão vive o
homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. O número
cinco remete, ainda, aos cinco sentidos, por meio dos quais o homem
terreno providencia sua orientação no mundo.
Os
dois peixes, além dos dois Testamentos, significariam a Palavra de
Deus, que a Igreja distribui às multidões, organizadas em grupos e
reuniões. Além do mais, os peixes, por serem animais das
profundezas das águas, recordam o mistério (o Verbo eterno do Pai,
Jesus Cristo) oculto no fundo do abismo da deidade, re-velado tanto
na Torah e nos Profetas do Antigo Testamento, quanto nos evangelhos e
nos escritos apostólicos do Novo Testamento.
Conclusão
Concluímos
com duas exortações:
São
João Crisóstomo: “Compreendes como na terra contemplas o que há
de mais precioso? E não somente o vês, mas ainda o tocas; e não
somente o tocas, mas também o comes; e depois de tê-lo recebido,
regressas para a tua casa. Purifica, portanto, tua alma, prepara teu
coração para a recepção destes mistérios”.
São
Francisco de Assis:
“Pasme
o homem todo, estremeça o mundo inteiro e exulte o Céu, quando,
sobre o altar, na mão do sacerdote, está o Cristo, o Filho do Deus
vivo! Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó humildade
sublime! Ó sublimidade humilde! O Senhor do universo, o Deus e o
Filho de Deus, assim se humilha e se oculta sob a módica fórmula de
pão para a nossa salvação! Vede, Irmãos, a humildade de Deus e
derramai diante d'Ele os vossos corações; humilhai-vos também vós
para que sejais exaltados por Ele. Nada, pois, de vós retenhais para
vós, para que vos receba a todos por inteiro Aquele que se vos dá
todo inteiro” (CO
26-31).
Marcos
Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini
Informações:
dorvalinofassini@gmail.com
PS.
Próximas “Pistas homiléticas” somente para o 10° Domingo do
TC.
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