Frei Dorvalino Fassini, OFM
Iniciamos há poucos dias mais uma Quaresma. Tempo
litúrgico que faz a memória dos quarenta dias de jejum, tentações e provações de
Cristo no deserto. Mais que sua dimensão cronológica, Quaresma é, antes, o
prelúdio, o princípio, o resumo de toda uma vida: a Dele, Cristo e de toda a
Humanidade, de cada um de nós, enfim.
No centro desse percurso está o fogo da paixão que Lhe
incendiara o coração por ocasião da teofania durante seu Batismo no rio Jordão:
Os céus se abriram, e Ele viu o Espírito
de Deus descer em forma de pomba e pousar sobre Ele. E do céu veio uma voz que
dizia: “Este é meu Filho muito amado, no qual ponho todo meu bem-querer (Mt
4,16-17). Testemunho que se repete mais adiante na teofania do Tabor.
Ser declarado Filho de Deus, porém, não era fato mas
convocação para vir-a-ser, um presente que devia ser amado com paixão e um
futuro que devia ser abraçado com esperança mediante o percurso do caminho das
limitações e fragilidades do humano. Aí estava, em resumo, o novo Céu e o novo
Homem que, em nome de seu Pai, devia inaugurar em Si e, a partir de Si, para
toda a humanidade.
Esboçava-se,
assim, sua batalha, sua grande aventura e angustiante busca: jamais sucumbir à
tentação de ser e viver como filho de Deus, uma vez que Ele era, de fato, o
Filho Unigênito do Pai. Mas, como esquecer-se de sua própria identidade? Como
aniquilar a toda a hora seu EU mais profundo de Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade? Enfim, como não vangloriar-se de sua condição divina, ou, como,
diríamos hoje, não usar dessa sua grandeza e poder em favor de Si e de sua
missão, em favor e benefício de seus semelhantes tão necessitados e carentes de
libertação? Não seria fugir do grande mandamento do Amor, da justiça e da paz?
Eis sua grande, primeira e última tentação.
No entanto foi assim que viveu sua passagem entre nós:
como filho do Homem. Um filho do
Homem tão apaixonado pelo nosso humano frágil e pecador que jamais quis
desvencilhar-se dele. Uma loucura para os mundanos e gentios e opróbio, vergonha
para os “religiosos”, os “puros”, os “justos“ e “santos” judeus de ontem e de hoje (Cf. 1Cor
1,23).
Por isso, O vemos toda hora afastar-se daqueles que o
querem como “deus” e mandando para longe aqueles que, a exemplo de Pedro, O
desejam como “rei”. Por isso, também, ama, deseja ardentemente “subir” para
Jerusalém, porque lá estão seus maiores e melhores “amigos”: Judas, os sumos
sacerdotes, as autoridades civis e a própria populaça, aqueles enfim que o
ajudarão a concretizar sua paixão pela sua (nossa) “criaturidade” (ser
criatura).
Essa era, pois, sua missão: inaugurar o novo e definitivo
caminho do Homem que Adão abandonara; dar uma nova origem (“genes”) ao homem: a
paixão pela grandeza de sermos “simplesmente” criaturas e não “deuses”, filhos
de um Pai que tem inveja dessa nossa condição e tanta que quis também Ele,
vive-la através de seu Filho unigênito. Assim, não temos mais um Deus-Deus, mas
um Deus-homem, humanado.
Segundo Marcos, só no fim, isto é, após ter bebido,
saboreado a última gota do cálice de seu humano é que houve o reconhecimento do
oficial romano: este homem é
verdadeiramente filho de Deus (Mc 15,39).
A encarnação, porém, proporciona a Cristo ser não apenas
mais um homem entre os milhões e
milhões, mas o Homem de todos os homens. Por isso, a partir de então o homem que
queira ser verdadeiramente homem tem que ser mais que homem. Ser mais que homem
significa trabalhar apaixonadamente seu humano até que brilhe e venha para fora
a pérola escondia e preciosa: a semente da filiação divina inaugurada por
Cristo. Enfim, o sentido de nossa vida não é nenhum outro senão o trabalho, a
aventura, a tarefa de dia após dia, buscar “ser quase Deus”, sendo cada vez e
sempre mais homem.
Quem maravilhosamente compreendeu e encetou esse caminho
foi São Francisco que, a partir do encontro com o Crucificado na igrejinha de
São Damião, jamais deixou de conformar-se com Ele. Por isso, também ele
tornou-se o homem mais humano e o mais angelical ou divino de todos os homens, o
homem que todos os homens desejam ser, ou, quem sabe, o primeiro e último homem,
o primeiro e último cristão, o segundo mais belo dentre os filhos dos homens.
Isso porque, ele, como ninguém, depois do próprio Mestre e de Maria, aprendeu a
chorar a Paixão do seu Senhor (LTC
14) e a fazer da sua Cruz a “Perfeita Alegria” (Cf. I Fioretti, capítulo
8º).
Em seu ardente desejo de conformar-se ao seu amado e doce
Jesus e a fim de não desviar-se jamais desse seu propósito fez de toda a sua
vida uma grande Quaresma. Por isso, além da Quaresma que vai de Quarta-feira das
Cinzas até a Páscoa, inventou outras quatro que as celebrava com o mesmo
fervor:
- a do Advento;
- a da Epifania ou “bendita”;
- a de São Miguel, e
- a Quaresma que ia da Festa dos Apóstolos Pedro e Paulo até a Assunção.
Assim, para Francisco, Quaresma vai além da dimensão meramente cronológica. É o Tempo de todos os tempos porque nela fulgura a busca maior de cada um de nós e de cada homem que vem a este mundo: a glória da Cruz, do Crucificado, Daquele que não cabendo no Universo inteiro quis caber num simples e pobrezinho coxinho e, finalmente, nos braços de um madeiro, porque “aí” é Seu e nosso lugar.
Diante de uma Campanha da Fraternidade que deseja servir
a Alegria do Evangelho à Sociedade, de uma sociedade que busca a todo custo,
inclusive o custo de seu próprio humano, a fim de ser feliz, realizada, que
busca nós, seguidores de Cristo, estamos lhe oferecendo? É realmente a do Cristo crucificado, o mais belo dos filhos dos homens? (Sl
45,3) Em nossas celebrações e pregações como brilha esse mistério originário da
nova Humanidade? Porque, por exemplo, a “usamos” tão pouco em nossas procissões
de entrada na Missa, ela que é nosso símbolo maior? Até que ponto elas evocam em
nós as lágrimas do Apóstolo porque, a exemplo dos antigos filipenses, nos
comportamos como inimigos da Cruz de Cristo? (Cf. Fl 3,18). Porque em nossas
missas lembramos muito a dimensão “festiva” e tão pouco a sacrifical? Não
esquecemos que o maior e o mais conhecido de todos os sermões que Jesus fez é o
da Sexta feira Santa? Um sermão sem palavras, do mais puro e eloquente silêncio?
Não seria essa a razão de tanta fé e devoção por esse dia sagrado do nosso povo
simples e fiel? Veja-se, por
exemplo, quanta importância os homens do mundo dão aos seus símbolos, suas
marcas, suas bandeiras! Por que, então, não prevalecer-se mais e melhor esse
símbolo vitorioso? E o que fazemos nós de nossa tão bela e expressiva oração de
São Francisco Nós vos adoramos...”?
Ou, não cremos mais que no coração de cada homem vigoram centelhas desse
Mistério?
Finalizando, segundo nosso atual papa, quando caminhamos sem a Cruz, edificamos sem
a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos
mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do
Senhor (Carta “Alegrai-vos”, da Sagrada Congregação dos Consagrados,
Paulinas, pag. 26).
A todos uma santa e abençoada Quaresma!
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