quarta-feira, 4 de março de 2015

Quaresma para quê?

Frei Dorvalino Fassini, OFM


Iniciamos há poucos dias mais uma Quaresma. Tempo litúrgico que faz a memória dos quarenta dias de jejum, tentações e provações de Cristo no deserto. Mais que sua dimensão cronológica, Quaresma é, antes, o prelúdio, o princípio, o resumo de toda uma vida: a Dele, Cristo e de toda a Humanidade, de cada um de nós, enfim. 
No centro desse percurso está o fogo da paixão que Lhe incendiara o coração por ocasião da teofania durante seu Batismo no rio Jordão: Os céus se abriram, e Ele viu o Espírito de Deus descer em forma de pomba e pousar sobre Ele. E do céu veio uma voz que dizia: “Este é meu Filho muito amado, no qual ponho todo meu bem-querer (Mt 4,16-17). Testemunho que se repete mais adiante na teofania do Tabor. 
Ser declarado Filho de Deus, porém, não era fato mas convocação para vir-a-ser, um presente que devia ser amado com paixão e um futuro que devia ser abraçado com esperança mediante o percurso do caminho das limitações e fragilidades do humano. Aí estava, em resumo, o novo Céu e o novo Homem que, em nome de seu Pai, devia inaugurar em Si e, a partir de Si, para toda a humanidade.
 Esboçava-se, assim, sua batalha, sua grande aventura e angustiante busca: jamais sucumbir à tentação de ser e viver como filho de Deus, uma vez que Ele era, de fato, o Filho Unigênito do Pai. Mas, como esquecer-se de sua própria identidade? Como aniquilar a toda a hora seu EU mais profundo de Segunda Pessoa da Santíssima Trindade? Enfim, como não vangloriar-se de sua condição divina, ou, como, diríamos hoje, não usar dessa sua grandeza e poder em favor de Si e de sua missão, em favor e benefício de seus semelhantes tão necessitados e carentes de libertação? Não seria fugir do grande mandamento do Amor, da justiça e da paz? Eis sua grande, primeira e última tentação.
No entanto foi assim que viveu sua passagem entre nós: como filho do Homem.  Um filho do Homem tão apaixonado pelo nosso humano frágil e pecador que jamais quis desvencilhar-se dele. Uma loucura para os mundanos e gentios e opróbio, vergonha para os “religiosos”, os “puros”, os “justos“ e “santos”  judeus de ontem e de hoje (Cf. 1Cor 1,23). 
Por isso, O vemos toda hora afastar-se daqueles que o querem como “deus” e mandando para longe aqueles que, a exemplo de Pedro, O desejam como “rei”. Por isso, também, ama, deseja ardentemente “subir” para Jerusalém, porque lá estão seus maiores e melhores “amigos”: Judas, os sumos sacerdotes, as autoridades civis e a própria populaça, aqueles enfim que o ajudarão a concretizar sua paixão pela sua (nossa) “criaturidade” (ser criatura). 
Essa era, pois, sua missão: inaugurar o novo e definitivo caminho do Homem que Adão abandonara; dar uma nova origem (“genes”) ao homem: a paixão pela grandeza de sermos “simplesmente” criaturas e não “deuses”, filhos de um Pai que tem inveja dessa nossa condição e tanta que quis também Ele, vive-la através de seu Filho unigênito. Assim, não temos mais um Deus-Deus, mas um Deus-homem, humanado.
Segundo Marcos, só no fim, isto é, após ter bebido, saboreado a última gota do cálice de seu humano é que houve o reconhecimento do oficial romano: este homem é verdadeiramente filho de Deus (Mc 15,39). 
A encarnação, porém, proporciona a Cristo ser não apenas mais um  homem entre os milhões e milhões, mas o Homem de todos os homens. Por isso, a partir de então o homem que queira ser verdadeiramente homem tem que ser mais que homem. Ser mais que homem significa trabalhar apaixonadamente seu humano até que brilhe e venha para fora a pérola escondia e preciosa: a semente da filiação divina inaugurada por Cristo. Enfim, o sentido de nossa vida não é nenhum outro senão o trabalho, a aventura, a tarefa de dia após dia, buscar “ser quase Deus”, sendo cada vez e sempre mais homem.
Quem maravilhosamente compreendeu e encetou esse caminho foi São Francisco que, a partir do encontro com o Crucificado na igrejinha de São Damião, jamais deixou de conformar-se com Ele. Por isso, também ele tornou-se o homem mais humano e o mais angelical ou divino de todos os homens, o homem que todos os homens desejam ser, ou, quem sabe, o primeiro e último homem, o primeiro e último cristão, o segundo mais belo dentre os filhos dos homens. Isso porque, ele, como ninguém, depois do próprio Mestre e de Maria, aprendeu a chorar a Paixão do seu Senhor (LTC 14) e a fazer da sua Cruz a “Perfeita Alegria” (Cf. I Fioretti, capítulo 8º).
Em seu ardente desejo de conformar-se ao seu amado e doce Jesus e a fim de não desviar-se jamais desse seu propósito fez de toda a sua vida uma grande Quaresma. Por isso, além da Quaresma que vai de Quarta-feira das Cinzas até a Páscoa, inventou outras quatro que as celebrava com o mesmo fervor:
  • a do Advento;   
  • a da Epifania ou “bendita”;
  • a de São Miguel, e
  • a Quaresma que ia da Festa dos Apóstolos Pedro e Paulo até a Assunção.

Assim, para Francisco, Quaresma vai além da dimensão meramente cronológica. É o Tempo de todos os tempos porque nela fulgura a busca maior de cada um de nós e de cada homem que vem a este mundo: a glória da Cruz, do Crucificado, Daquele que não cabendo no Universo inteiro quis caber num simples e pobrezinho coxinho e, finalmente, nos braços de um madeiro, porque “aí” é Seu e nosso lugar.
Diante de uma Campanha da Fraternidade que deseja servir a Alegria do Evangelho à Sociedade, de uma sociedade que busca a todo custo, inclusive o custo de seu próprio humano, a fim de ser feliz, realizada, que busca nós, seguidores de Cristo, estamos lhe oferecendo?  É realmente a do Cristo crucificado, o mais belo dos filhos dos homens? (Sl 45,3) Em nossas celebrações e pregações como brilha esse mistério originário da nova Humanidade? Porque, por exemplo, a “usamos” tão pouco em nossas procissões de entrada na Missa, ela que é nosso símbolo maior? Até que ponto elas evocam em nós as lágrimas do Apóstolo porque, a exemplo dos antigos filipenses, nos comportamos como inimigos da Cruz de Cristo? (Cf. Fl 3,18). Porque em nossas missas lembramos muito a dimensão “festiva” e tão pouco a sacrifical? Não esquecemos que o maior e o mais conhecido de todos os sermões que Jesus fez é o da Sexta feira Santa? Um sermão sem palavras, do mais puro e eloquente silêncio? Não seria essa a razão de tanta fé e devoção por esse dia sagrado do nosso povo simples e fiel?  Veja-se, por exemplo, quanta importância os homens do mundo dão aos seus símbolos, suas marcas, suas bandeiras! Por que, então, não prevalecer-se mais e melhor esse símbolo vitorioso? E o que fazemos nós de nossa tão bela e expressiva oração de São Francisco Nós vos adoramos...”? Ou, não cremos mais que no coração de cada homem vigoram centelhas desse Mistério?  
Finalizando, segundo nosso atual papa, quando caminhamos sem a Cruz, edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor (Carta “Alegrai-vos”, da Sagrada Congregação dos Consagrados, Paulinas, pag. 26).   
A todos uma santa e abençoada Quaresma!

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