domingo, 20 de maio de 2012

Uma mente franciscana na Cátedra de Pedro

Frei Dorvalino Fassini, OFM

Quando, encerrado o último conclave, houve o anúncio de que o Cardeal Ratzinger, então Prefeito da Sagrada Congregação da Fé, havia sido eleito Papa, pensei com meus botões: ”Ich! Agora, em vez de um Papa jovial, comunicativo e aberto teremos que nos contentar com um Papa sério, sisudo, durão e fechado e, por conseqüência, pouco franciscano. A impressão parecia confirmar-se porque, ao contrário dos últimos, desde o franciscano terciário João XXIII, o atual papa não fez nenhuma visita ou peregrinação a Assis a fim de buscar inspiração e implorar bênção e proteção do evangélico e apostólico São Francisco.

A primeira impressão, porém, dessa vez, não foi a que ficou. Aos poucos, apesar de seus cãs envelhecidos, foi aparecendo a figura de um papa simples, jovial, reflexivo e de uma alegria franciscana, comedida e interior, expressa quase sempre por uma face transparente e por um sorriso amável, humilde e, até certo ponto, tímido, enfim, um Papa de espírito franciscano.

Espírito que veio surpreender-nos positivamente com a publicação da “Exortação apostólica Verbum Domini sobre a Palavra de Deus na Vida e na missão da Igreja”. De fato, nunca houve nos últimos anos um documento eclesial tão imbuído da mística do Poverello como esse. Como Francisco também nosso Papa na Palavra de Deus vê não apenas palavras ou um mero meio de comunicação, mas, antes e acima de tudo, vê e contempla uma Pessoa, um Deus que, depois de ter inventado mil e uma forma de comungar da vida do homem, não sabendo mais que iniciativa tomar, se abrevia, se apequena (VD 11-12) todo e inteiramente, como criança num presépio e como um condenado à Cruz. E, ao mencionar são Boaventura, com a famosa citação de que cada criatura é Palavra de Deus porque proclama Deus, ele põe nosso Doutor seráfico em pé de igualdade com a grande tradição dos Padres gregos (VD 8). Finalmente, ao falar da interpretação da Sagrada Escritura pelos Santos, isto é, por aquelas pessoas que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus, daqueles cuja vida se tornou uma viva lectio divina (VD 48), abre grandes encômios a São Francisco e Santa Clara. De fato, em nosso primeiro contato com esse documento, logo que veio à luz, ficamos surpresos porque se o espírito jesuíta e tomista, um tanto pesado e rigoroso, perpassava a maioria dos documentos papais das últimas décadas e mesmo do Vaticano II, agora estamos diante de um documento impregnado da leveza e graciosidade do espírito franciscano em geral e bonaventurano especificamente.

Toda essa admiração e ênfase pelo espírito originário franciscano do papa atual vem confirmar-se agora com a vinda à luz de Benedetto XVI e San Francesco. Nesse livro, de 300 páginas, o conventual frei Gianfranco Grieco - jornalista renomado e de larga experiência no dia-a-dia tanto de João Paulo II como do Papa atual -, recolheu todos os seus pronunciamentos em referência não apenas a São Francisco, mas também à Espiritualidade franciscana em geral, principalmente de São Boaventura.

Ouçamos o que diz, já de saída: Bento XVI é um Papa inteiramente franciscano. ”Temos todos uma alma um pouco franciscana” disse ele próprio comentando, no decorrer da audiência geral de 12 de outubro de 2005, o salmo 121 e a saudação franciscana “Paz e Bem!” (o.c. p. 1).

Mas, a surpresa mais grata, principalmente para nós franciscanos, aparece mais adiante quando o próprio Bento XVI afirma que a semeadura do espírito franciscano em sua mente começou a dar-se bem cedo quando começava a ensaiar os primeiros passos em sua longa e permanente investigação filosófica e teológica. É o que revela em sua preleção feita aos alunos do Pontifício Seminário Romano Maior: “No começo, nos primeiros dois anos de Filosofia, haviam-me fascinado, desde o primeiro momento, a figura de Santo Agostinho e depois também a corrente agostiniana na Idade Média: São Boaventura, os grandes franciscanos, a figura de São Francisco de Assis”.

E, logo em seguida o autor registra mais esse testemunho: “Hoje (diz o Papa na audiência geral de 03 de 03 de 2010), quero falar-vos de São Boaventura de Bagnorégio. Confesso-lhes que, ao propor-vos esse tema sinto certa nostalgia, porque me vem à mente as pesquisas que, quando jovem estudioso, realizei justamente sobre esse autor, a mim particularmente caro. Não foi pequena a incidência de sua sabedoria sobre minha formação. Com muita alegria, há poucos meses volvi-me em peregrinação à sua terra natal, Bagnorégio, uma cidadezinha italiana, no Lázio, e que guardo com muita veneração na memória (idem p. 14).

E no domingo, 17 de junho, em Assis, na Catedral de São Rufino, volta ao seu relacionamento privilegiado com São Francisco: “Já como estudante, - revela – quando me preparava para uma Cátedra, estudei São Boaventura e, como conseqüência, também São Francisco, de modo que peregrinei a Assis, bem antes de vir para cá fisicamente”. (idem p. 15).

Finalmente, testemunha frei Gianfranco: O grito tormentoso e humilde do “Quaerere Deum”(“A Busca de Deus”) parisiense, aflorado da alma, no decurso do encontro com os representantes da Cultura no “Colégio dos Bernardinos”, sempre acompanha os passos do Papa Bento. Apraz-lhe retornar e repropor seguidamente esta necessidade interior do homem, jamais totalmente apagada: ”O caminho para Deus é Deus mesmo, o Qual se faz próximo de nós em Jesus Cristo , e assim a Teologia grande e misteriosa de São Francisco se torna muito concreta, real...” E, depois de mencionar o Areopagita Dionísio e o grande teólogo franciscano São Boaventura, que soube interpretar e pôr em formas conceituais essa herança tão simples e profunda, isto é, a teologia mística do nosso Seráfico Pai, continua o Papa: “O Poverello, com Dionísio nos diz, enfim, que o Amor vê bem mais que a razão. Onde houver a luz do amor não penetrarão jamais as trevas da razão; o amor vê, o amor é olho. E a experiência nos dá muito mais que a reflexão. O que vem a ser essa experiência Boaventura a vê em São Francisco. Trata-se da experiência de um caminhar muito humilde, muito realista, dia após dia: um caminhar com Cristo, assumindo sua Cruz. Nessa pobreza e nessa humildade, humildade que se vive também na eclesialidade, é a experiência de Deus que é bem mais alta do que aquela que se recolhe através da reflexão: naquela tocamos realmente o coração de Deus”(idem).

E, conclui o frade conventual: Para colher em profundidade a relação teológica, cultural e espiritual entre o teólogo Ratzinger, São Francisco e o Doutor seráfico, basta ler o volume “San Bonaventura. La teologia della storia” de autoria do próprio Papa (idem). Através dessa obra pode-se perceber quanto a teologia e a mística franciscano-bonaventurana plasmaram a alma do atual Papa. 

Encerramos com uma questão: O que representa ou significa para nós franciscanos ter na cátedra de Pedro um Papa que, tanto em seus documentos como em sua conduta de Pastor supremo da Igreja e da humanidade, se inspira segundo a luz do espírito e o fervor do coração de nosso Seráfico Pai?

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