[por Frei Dorvlino Fassini, OFM]
A programação dos festejos jubilares da conversão de Santa Clara escolheu alguns temas considerados fundamentais para o carisma não apenas de Santa Clara e das clarissas, mas também de São Francisco e de todos os franciscanos. Com isso, deseja-se fazer do ano jubilar dos 800 anos de Vida clariana um momento de retorno aos princípios originários de nossa espiritualidade. Entre esses princípios está a contemplação.
Essa escolha se justifica porque, de fato, não dá para imaginar um São Francisco ou Santa Clara, e, consequentemente, um franciscano, sem vida contemplativa. Parafraseando alguém que disse que o cristão de amanhã ou será místico ou não será nada, podemos, dizer, semelhantemente, para nós, que o franciscano de amanhã ou será contemplativo ou não será nada. Ou seja, se não se resgatar essa dimensão originária de nossa identidade seremos como sal que perdeu seu vigor e que, por conseguinte, não serviremos para mais nada senão sermos jogados fora, à margem da humanidade.
Devemos, então e primeiramente, perguntar-nos como foi a vida contemplativa de Francisco, de Clara e dos primeiros frades? Ou, o que e como vem a ser contemplação franciscana, ser contemplativo, tanto para as Irmãs clarissas que vivem essa dimensão, enclausuradas, como para nós frades e irmãs de vida ativa, ou franciscanos seculares que vivemos peregrinos no mundo? E, para ampliar mais ainda esse questionamento, como falar de vida contemplativa franciscana, quando nós, hoje, pastoralistas, ativistas, agentes e consumistas de todos os tipos e gostos, somos tão pouco contemplativos?
Diante dessa dificuldade não nos resta outro caminho senão tentar ouvir o testemunho deles mesmos, isto é, de Clara, Francisco e daqueles que presenciaram seus enlevos místicos.
Assim, para começar, olhemos uma passagem de Santa Clara:
Portanto, caríssima Irmã, mas senhora, muito veneranda, porque sois esposa, mãe e Irmã de meu Senhor Jesus Cristo, assinalada, com todo o esplendor, pelo estandarte de uma virgindade inviolável e da santíssima Pobreza, confortai-vos no santo serviço, iniciado pelo ardente desejo do Pobre Crucificado, que, por todos nós, suportou a Paixão da cruz, arrancando-nos do poder do príncipe das trevas, ao qual estávamos presos pela transgressão dos primeiros pais, reconciliando-nos com Deus Pai. (2CCL 11-13)
Foi esse mesmo ardente desejo do Pobre crucificado que, primeiramente, ferira o coração de Francisco em seu encontro com o Crucificado de São Damião e, posteriormente, o coração de todos os seus seguidores, mormente de Santa Clara. Só que nós, hoje, estamos tão acostumados a falar do “desejo ou da paixão de Cristo” que pouco ou quase nada mais repercute em nossa mente e coração. Quando olhamos, porém, para Clara e Francisco não podemos deixar de perceber que o atingimento que provem desse encontro tornara-se para eles uma questão de vida ou morte. Ou seja, no princípio de sua nova existência, de seu novo “ser cristão” não está uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo de toda a humanidade (Hermógenes Harada).
Trata-se de uma novidade inaudita e humanamente inconcebível: Deus arde em desejo, em paixão pelo nosso humano, por cada um de nós. Um desejo, uma paixão tão “louca”, tão “vergonhosa” aos olhos do mundo, no dizer de São Paulo, que leva o Verbo eterno do Pai a abreviar-se, a apequenar-se tanto e de tal modo que no presépio não tinha outra feitura senão a de um pobre menino de Belém, nascido neste mundo e deste mundo, e depois, na Cruz, mais parecia um verme esmagado, um leproso carregado de pecados e ferido por Deus do que propriamente um homem (Cf. Is 53 e VD 12). Todas essas expressões, porém, não indicam uma figura retórica, mas uma experiência vivida, tão bem testemunhada em inúmeras passagens da vida de Clara e Francisco. Vamos mencionar apenas uma passagem de cada um desses nossos mestres.
São Boaventura falando do princípio originário da nova existência de Francisco assim se expressa: Enquanto, num dia, rezava, assim arrebatado e a abundância do fervor o absorvia todo em Deus, apareceu-lhe Cristo Jesus, como que pregado na cruz. Aquela visão desfaleceu-lhe a alma e a memória da Paixão de Cristo ficou tão profundamente gravada até a medula nas vísceras de seu coração que, desde aquela hora, quando a crucifixão de Cristo lhe vinha à mente, mal podia conter exteriormente as lágrimas e os gemidos, como ele próprio referiu, depois, aos mais íntimos, ao aproximar-se do fim. Com isto, pois, o homem de Deus compreendeu que se dirigiam para ele aquelas palavras do Evangelho: Se queres vir após mim, renuncia a ti mesmo, carrega tua cruz e segue-me (LM 1,5).
A mesma experiência ou vivência pode ser percebida em Clara, como muito bem aparece nessa passagem: Era-lhe familiar o clamor da Paixão do Senhor, a ela que, ora exauria das sagradas chagas afeições perfumadas de mirra, ora fugia aos gozos mais doces. Embriagavam-na veementemente as lágrimas de Cristo padecente, e a memória reproduzia com freqüência aquele que o amor lhe gravara fundo em seu coração. (LCL 30,1-2).
Não é de estranhar, então, se, posteriormente, Clara, como vimos, exorta sua Irmã Inês de Praga a que se fortaleça no santo serviço, iniciado pelo ardente desejo do Pobre crucificado, que por todos nós suportou a Paixão da Cruz (1CCL 13-14).
Francisco e Clara e todos aqueles nossos primitivos Irmãos e Irmãs mergulhavam tão profunda e “naturalmente” nesse mistério como os peixes nas águas de seus rios. Por isso, os vemos seguidamente conversando com o seu Senhor assim como nós costumamos conversar com nossos amigos e familiares. Por isso, também, para eles, os sofrimentos, as dores desapareciam como a neve sob os raios do sol ou a cera se derrete diante do calor da chama ardente do fogo.
Francisco, Clara e todas aquelas Irmãs e Irmãos estavam tão tocados e tomados pelo vigor da Paixão do Pobre crucificado que já não faziam contemplação porque essa Paixão havia feito neles sua habitação tornando-se carne de sua carne, osso de seus ossos, coração de seu coração, vida de sua vida. Assim de contemplativos haviam-se tornado a própria contemplação. Ou seja, a graça do ardente desejo, iniciado com e do encontro com Jesus Cristo crucificado tornara-se para eles não apenas um grande acontecimento, mas um “sacrum convivium”, celebrado a toda a hora nos diferentes acontecimentos de seu cotidiano. Consequentemente, Francisco não precisava de eremitério porque todo o lugar era lugar de contemplação, não precisava de um convento porque todo o mundo, isto é, todas as realidades do seu cotidiano, era seu templo, o lugar de encontrar-se com seu amado como se pode ver nessa passagem:
Francisco era muitas vezes arrebatado por tamanha doçura da contemplação que ficava fora de si, e a ninguém revelava as experiências sobre-humanas que então tivera.
Mas, por um fato, que uma vez chamou a atenção, podemos imaginar com que freqüência ficava absorto na doçura celestial. Certa vez estava sendo transportado num jumento, e precisou passar por Borgo San Sepolcro. Como quisesse descansar numa casa de leprosos, muita gente ficou sabendo da passagem do homem de Deus. De toda parte acorreram homens e mulheres para vê-lo, querendo tocá-lo com a costumeira devoção. E então? Apertavam-no, empurravam-no e lhe cortavam e repunham pedaços da túnica. Ele parecia insensível a tudo e, como um corpo morto, não tomou conhecimento de nada do que estavam fazendo. Afinal, chegaram ao lugar. Muito depois de terem passado por Borgo, o contemplador das coisas do Céu, como voltando de longe, perguntou solicitamente quando chegariam a Borgo ( 2C 98,8).
Também de Clara as fontes nos guardam memoriais admiráveis acerca de sua familiar participação no ardente desejo e fervorosa paixão do Pobre crucificado como a que aconteceu por ocasião da celebração da Sacratíssima Ceia, em que o Senhor amou os seus até o fim. Perto da tarde, aproximando-se a agonia do Senhor, Clara, entristecida e aflita, encerrou-se no secreto da cela. Como, ao acompanhar em oração o Senhor orante e a alma triste até a morte, absorvesse o afeto da tristeza dele, sua memória tornou-se ébria e inteiramente impregnada da captura e da zombaria, caiu na cama. Absorta, em toda aquela noite e no dia seguinte, permaneceu assim, tão fora de si que, com o olhar ausente, cravada sempre em sua visão única, parecia crucificada com Cristo, totalmente insensível. Uma filha, familiar, voltou diversas vezes a ela para ver se queria alguma coisa e encontrou-a sempre se comportando do mesmo jeito. Chegando a noite do sábado, a filha devota acendeu uma vela e lembrou a mãe, não com palavras, mas com sinal, a ordem de São Francisco. Pois, o Santo ordenara que não passasse um dia sequer sem comer. Assim, na presença da Irmã, Clara, como se estivesse voltando de outro lugar, pronunciou essas palavras: "Qual a necessidade de vela!? Por acaso não é dia?" Respondeu a outra: "Mãe, foi-se a noite, passou o dia e voltou outra noite". E Clara: "Bendito seja este sono, caríssima filha, porque, por muito tempo desejado, foi-me concedido. Mas, toma cuidado para não contares a quem quer que seja este sono, enquanto eu viver na carne" (LCL 31).
Divagações
Na dinâmica ou lógica do amor a causa do enamoramento está sempre no outro. Assim, para nós, na origem de nossa afeição franciscana está a pessoa de Jesus Cristo com tudo o que veio e vem operando a fim de conquistar um pouco de nossa atenção e amor. Mas, se pudéssemos entrar em seu coração e lhe perguntássemos por que faz ou fez tudo isso dirá que os “culpados” somos nós; que nós é que O encantamos e nos tornamos sumamente preciosos, o único tesouro de toda a sua eternidade, o único amor de seu coração; que somos para Ele a “coisinha” mais linda, preciosa, santa e divina que existe.
Por isso, quem está no vigor do transbordamento da paixão ou do enamoramento nada mais verá, nada mais encontrará senão vestígios da pessoa amada em todas as pessoas, lampejos de seu amor em cada criatura ou acontecimento de sua vida. Consequentemente, é próprio do franciscano, a exemplo de seus mestres, divisar sempre, em cada pessoa, criatura ou acontecimento, o brilho do ardente desejo, o perfume da fama Daquele que nos amou por primeiro. Assim, para Francisco o sol não era mais e apenas um astro rei, mas uma presença real do próprio Senhor que criou o sol e todas as demais criaturas somente por causa dele, Francisco. Não existisse ele Deus jamais teria criado o sol e nenhuma de suas criaturas. Para quê? Não faria sentido. Por isso, o franciscano nelas, por elas e com elas saberá celebrar o encontro com Aquele que, profundamente enamorado de nós, quis despojar-se de sua divindade para fazer-se um de nós. Consequentemente, também, o ardente desejo do Pobre crucificado, vivamente admirado, pensado, estudado, recolhido, meditado, amado e contemplado no dia-a-dia da vida daqueles nossos Irmãos e Irmãs “produziu” o que “produziu”: almas ferventes da Paixão do seu Senhor. Não é de admirar, então que, escrevendo a mesma Inês, Clara exorta-a a que sempre se recorde desse princípio, dessa fonte, bem como de jamais abandonar sua decisão, seu propósito de segui-lo (Cf. 2CCL 11).
Na lógica da paixão aquilo que uma vez se crava em nosso coração jamais se desencravará. Não há como se fugir daquilo ou de quem se amou, mesmo que algum dia se venha a odiá-lo. Plasmam-se assim, no coração do discípulo impressões evangélicas ou crísticas tão indeléveis como aquelas que, por exemplo, se modelaram no coração de Maria Madalena, Zaqueu, os Apóstolos todos, São Francisco, Santa Clara e tantos outros. Aquela pequenina afeição originária, que no começo se assemelhava a um simples pavio a fumegar, vai se intensificando, crescendo e incendiando tudo o que está ao seu redor: sentimentos, vontade, razão, trabalhos, alegrias, sucessos, fracassos, enfim todo ser e fazer do vocacionado. Labaredas eternas vão se acendendo em seu coração a ponto de jamais poder esquecer o que um dia incendiou seu coração. Labaredas que podem se amainar com o vento ou tufão de outras afeições, mas jamais extinguir-se com a passagem de pseudos amores. O que passou não passou. A não ser que jamais se tenha passado. É o céu já aqui na terra, a vida eterna na vida terrestre, o divino no humano.
Quando nos entregamos a alguém que nos tocou profundamente com seu bem-querer, dele jamais haveremos de nos desvencilhar. Em outras palavras, tudo aquilo que, no começo, pareciam laços sem importância e desatados transformam-se em grilhões eternos. Tudo que nosso coração conquista ou por ele é conquistado, disso ele se torna para sempre prisioneiro. Não há jamais como fugir-se daquilo ou de quem se amou, mesmo que agora se o odeie. E é mortal que a gente se afaste de quem ou daquilo que se ama. Tolice o que, por vezes se ouve: só um outro amor pode substituir um grande amor (Paulo Santana). Nada há que desencrave o que se cravou uma vez no coração, mesmo que já se tenha desencravado. No coração plasmam-se impressões digitais indestrutíveis. Esqueça de esquecer o que um dia incendiou o seu coração (idem). É como um selo, uma tatuagem eterna gravados em nosso coração. É dessa experiência que já nos falava o Cântico dos Cânticos: o amor é forte como a morte e a paixão é implacável como a sepultura e sua chama é chama de fogo, verdadeira labareda do Senhor. Águas torrenciais não podem apagar o amor, nem os rios afogá-lo (Ct 8,6-7
Quem descreve bem esse processo é frei Hermógenes Harada quando diz que na origem de toda a contemplação franciscana está, pois a experiência do encontro. E a afeição de um encontro jamais vem de nós mesmos como o poder e o arbítrio da nossa própria vontade e do nosso intelecto. Ela já é dom do próprio encontro. No seguimento, Jesus Cristo já sempre nos amou primeiro. O gosto, a afeição do seguimento, a afeição desse caminho, nós recebemos de Jesus Cristo. É necessário, pois receber essa afeição, guardá-la e cultivá-la e fazer crescer, para uma emoção entranhada, dinâmica, para um sentimento profundo e forte, para uma cordialidade firme, constante, efetiva e fiel, enraizada na evidência da pura positividade da busca discipular. (Hermógenes Harada, De estudo, anotações obsoletas, p. 116).
E mais adiante o mesmo confrade conclui dizendo que todo esse processo de amadurecimento tem todas as características de maturação e perfeição que nasce de um encontro na história de amor, onde tudo é busca, doação, engajamento, conquista e risco, dom de um encontro todo especial, de uma aventura singular, perigosa e fascinante, única e absoluta da existência cristã, isto é do seguimento de Jesus Cristo (idem, p. 119).
Tudo isso condiz com o significado etimológico da palavra contemplação. Contemplação, no latim “contemplatio”, literalmente, significa o vigor, o fascínio, a ação que vem do templo ou melhor, de quem está no templo, isto é, na sede, na busca de Deus. Não é a toa que templo, na antiga Grécia e Roma, indicava o espaço delimitado, seccionado do acampamento militar, destinado ao adivinho que, posicionando-se no alto de uma torre, só tinha uma única coisa a fazer: ficar na observância, na escuta e acolhida do sentido do vôo do pássaro. Ou seja, sua função era única e tão somente de interpretar os sinais do tempo: tempo de atacar o inimigo ou de precaver-se de seus possíveis ataques.
Nesse sentido pode-se dizer que contemplar é pôr-se na escuta obediente e fiel dos sinais Daquele que se dispõe, desde toda a eternidade, a vir ao nosso encontro, como sentido da história e do ser do homem. E quando acontece o milagre dessa visita e desse encontro, o homem, incendiado pelo fervor desse toque, mesmo nas coisas mais insignificantes deste mundo, como o lavar panelas para Tereza d’Avila, o visitar doentes para o Crua d’Ars, será frequentemente arrebatado para os enleios celestes; ou como Clara, ver-se-á veementemente embriagado pelas lágrimas do Cristo padecente; verá em sua memória Aquele que o amor o gravara fundo em seu coração (Cf. LCL 30,2).
Esse modo, Clara descreve-o com muita reverência e comoção interior quando exorta sua Irmã Inês a que contemple, todos os dias, a pobreza, princípio desse Espelho, colocado no presépio e envolto em panos. Ó humildade admirável, ó pobreza estupenda! O Rei dos anjos, Senhor do Céu e da Terra, deitado num presépio! No meio do Espelho considera a humildade, ao menos a bem-aventurada pobreza, os inúmeros trabalhos e sofrimentos, que suportou pela redenção do gênero humano. No fim, porém, no mesmo Espelho, contempla a caridade inefável, com que quis sofrer na árvore da cruz e nela morrer todo gênero torpe de morte. Daí, o próprio Espelho, colocado no lenho da cruz, admoestava os transeuntes para considerar o que viam, dizendo: Ó vós todos, que passais pela estrada, escutai e vede se há uma dor, como a minha (4CCL 15-24).
- Foto: Monumento Francisco e Clara de Assis, Bairro Glória, cidade do Rio de Janeiro / Eugenio Hansen. 20110518.
Nenhum comentário:
Postar um comentário