sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Natal, de novo?

Escrever, de novo, sobre o Natal? Por acaso, há algo de novo, que ainda não foi dito escrito ou falado acerca desta Solenidade? Mas, também, por outro lado, por que querer coisas novas se as antigas é que são as melhores e mais verdadeiras? Ou melhor, novo não é aquilo ou aquele que nunca envelhece? Não é isso que afirma o Evangelho quando diz que o vinho velho é sempre o melhor (Lc 5,39)? Aliás, o próprio Evangelho, como Boa-Nova, não é, por acaso, concretização do antigo (eterno) desejo de Deus de fazer-se homem, começando por ser Criança, Deus-Menino?

Interessante é que o Latim chama menino de “infans”, isto é: aquele que não fala, não pensa, não quer, não pode, não sabe, não faz. Natal é, pois, a Festa do Deus que vem a nós como Aquele que não fala, não pensa, não quer, não pode, não sabe e não faz.

Natal, Deus-Menino, porém, não foi e nem é apenas um fato, acontecimento ou ocorrência. Em verdade, Jesus nunca deixou de ser Menino. Sempre foi um “infans”. Não só e muito mais! Veio inaugurar um novo Reino: O Reino dos homens-meninos, crianças: Se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18,1-5).

Ser “como”, aqui é igual a “de verdade”, “não fingido” ou “não de mentirinha”. Mas, o que é ser criança de verdade, não de mentirinha? É ser pra valer, no empenho e busca da mesma identidade, do mesmo modo de ser da criança. Mas, para isso é preciso virar, ser inteiramente outro, converter-se, renascer. Em outras palavras, celebrar o Natal, como mistério do Deus-Menino significa entrar e viver na dinâmica da criança. Por isso, disse também, o Senhor, na mesma ocasião, que, para ser criança, isto é, para converter-se para o novo Homem e assim ser o maior no Reino dos céus, é preciso humilhar-se como esta criança.

Isso significa que só é verdadeiramente adulto, grande, verdadeiramente homem, aquele que se tornar verdadeiramente “infans”. Mas, por quê? Por que o modo de ser da criança é ser todo doação plena, simples, cheia de generosidade humilde e natural da vida nascente. É a inocência da jovialidade do ser; é estar aí, aberto e contido na doação simples de si à doação generosa da vida, presente e borbulhante em cada acontecimento, criatura ou pessoa. Quem se empenha na busca deste modo de ser do pequenino, diz Jesus, é o maior no Reino dos céus.

O Natal não é, pois, sempre de novo, convocação deste e para este mistério? Mistério que nos pede para estar atentos aos acenos da Boa e antiga Nova do pequenino, da humildade da criança em cada criatura porque aí se encontra a semente da grandeza do Pai que nos amou por primeiro? Grandeza que aparece não como poder de dominação, mas sim como pobreza e pequenez da vida recém-nascida do presépio?

Criança, menino não é apenas uma etapa da vida, mas um modo de ser, um espírito que todo homem tem e deve cultivar. É o estado anterior ao pecado que Cristo veio re-criar e que agora está em cada um de nós de modo embrionário, como uma terra prometida, um tesouro escondido, o paraíso perdido à espera de trabalhadores e conquistadores.

Que no fundo de nossa humanidade mais íntima re-nasça, pois e sempre de novo, o menino, o Reino da inocência sem o qual não poderemos jamais entrar no reino dos céus! Pois, não diz o Senhor: Em verdade vos digo, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino dos céus(Mt 18, 1-5)1? Eis porque sempre é bom, importante e necessário falar, escrever, de novo acerca do Natal e seu significado.

1 Cf. Fr. Hermógenes Harada, Coisas, velhas e novas, IFAN, 2006 p. 376.

[Frei Dorvalino Fassini, OFM]

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Por que não posso fazer Leitura Orante da Palavra

Reflexões a partir de uma carta do Ministro Geral Com a data de 23/03/08, recebemos de nosso Ministro Geral, Frei José Rodriguez Carballo, a carta “Guiados pela Palavra, mendicantes de sentido” (GPMS). Nela há uma exortação muito insistente para que nos exercitemos na Leitura orante da Palavra (LOP), lamentando que alguns frades resistam em adotar esse caminho de oração e leitura por julgá-lo um método próprio e exclusivo da tradição monástica1. E, para assegurar sua fervorosa exortação, cita abundantemente o documento Lineamenta2. Preciso confessar, porém, que me incluo entre os frades que não apenas resistem, mas que não fazem a LOP. E isso não por considerá-la uma prática monacal e medieval, mas por outras razões que pretendo expor neste artigo.
I. LEITURA DIVINA e LEITURA ORANTE DA PALAVRA
Comecemos com uma constatação acerca do nome. 
Tanto nosso Geral como muitos outros, hoje, misturam o nome, falando ora de LD ora de LOP, como se fossem a mesma coisa. Pode ser que às vezes seja. Há, porém, certa LOP que difere essencialmente da LD, como, por ex., a proposta pelos autores do livrinho “Leitura orante da Bíblia, Roteiros para reflexão XII” do CEBI3. Por isso, neste artigo sempre que falarmos de LOP estamos nos referindo a esse modo ou tipo de LOP.
A LOP, como aparece no livrinho citado e em outras publicações, tem como princípio ou ponto de partida o contexto ou realidade social, política, econômica e religiosa, seja do tempo do autor do texto sagrado, seja do leitor de hoje. Ou seja, a luz a partir da qual se procura ler e entender a Palavra de Deus procede de nossas aspirações, projetos, lutas e dificuldades. Tornou-se famoso, por exemplo, o triângulo ou tripé que envolve e sustenta essa leitura ou a Bíblia: comunidade, pessoa e sociedade, bem como seu princípio: Os pobres lêem a Bíblia a partir de sua Sociedade e de sua luta4. Notemos que o negrito não é nosso, mas sim dos autores.
Já a LD, como o próprio título diz, parte tão só e simplesmente do divino. Nisto está a diferença essencial entre a LD e a LOP5: enquanto a primeira parte de dimensão humana a segunda procura iluminar-se com a própria luz que inspira, conduz e perfaz o próprio texto, isto é, sua condição de ser divina.
Por isso, não há como percorrer o primeiro exercício sem um mínimo de conhecimentos sociológicos, políticos, econômicos, exegéticos, etc. Assim, enquanto a LD procede de dentro, do seu interior - o divino - a segunda se origina de fora, do exterior, de longe. Enquanto essa faz uma leitura direta e imediatamente comprometida, corpo a corpo com o espírito do texto, a primeira, a modo de jornalista que sobrevoa de helicóptero, fica pairando sobre o texto, examinando-o a partir de suas teleobjetivas. Na segunda, o leitor está dentro, envolvido e tomado pela palavra e seu mistério, enquanto que na primeira, ele, o leitor, é que envolve, tem ou mantém a palavra divina em seu poder e para seus projetos, interesses e benefícios. Não importa aqui se esses objetivos ou interesses sejam sumamente edificantes e mesmo espirituais, como muito bem afirma nosso Ministro Geral: um precioso instrumento que pode ajudar-nos a superar o abismo que muitas vezes percebemos entre fé e vida, entre espiritualidade e cotidianidade6.
Ora, nesse caso, está claro que não estamos mais diante de uma mera adaptação e sim de uma verdadeira transformação. Isso porque transformamos o texto divino em instrumento, meio ou recurso para nossos objetivos, realizações, santificação e conversão.
Assim, sem se aperceber, na LOP o leitor faz-se sujeito e agente da leitura (do texto) e essa(e) objeto de sua ação. Por isso, nesse caminho a leitura virá sempre com a marca da subjetividade ou objetividade de quem a faz ou pratica. Tanto faz se essa subjetividade ou objetividade é particular, singular ou grupal e coletiva.
Já no modo de processar-se da LD o que principia, conduz e orienta, do começo ao fim, é a dinâmica da gratuidade do encontro, essência de todas as páginas da SE. Nessa dinâmica o leitor não está fora, distanciado, acima ou abaixo do texto sagrado, divino. Na essência da LD está o caráter, a marca de ser divina. Mas, o divino desse texto não está, evidentemente, na materialidade das palavras, do texto, mas sim no fato de nascerem da experiência da liberdade do encontro, tanto do escritor como do leitor. Sem esse a priori não existirá jamais nenhuma LD. Na LD é como se o leitor lesse ou ouvisse acerca de si mesmo, a partir de si. Não, evidentemente, de sua subjetividade, mas sim do mistério do qual brota sua existência historial com sua vocação-missão.
Por isso, aqui, na LD, “divina” não é adjetivo, mas sua essência, o modo de ser que dá a marca própria desse exercício que se apresenta muito mais na pessoa que escreve, ouve, escuta ou lê do que propriamente no texto. A LD não é divina porque o objeto que se lê seja divino, mas sim pelo espírito que move escritor-leitor-texto. Logo, por simplesmente estar lendo um texto inspirado ou divino, não está garantido que se esteja fazendo LD. O contrário também pode acontecer. Posso estar lendo um texto profano, e até mesmo a-religioso, ateu ou materialista e, no entanto, estar no exercício da LD.
Além do mais, quando se tem como princípio orientativo a sociedade com suas lutas, etc. torna-se muito difícil, complicado e quase impossível para nós, isto é, para a maioria ou o comum dos frades, dos fiéis ou religiosos fazer LD. Pois, além de ser um caminho impróprio, a rigor, são muito poucas as pessoas que podem ter uma boa dose de conhecimentos sociais, políticos, econômicos, religiosos, exegéticos, historiográficos, etc.
Certos manuais ou roteiros da LOP pedem, também, que os orientadores sejam criativos na preparação do ambiente, que façam uso de roteiros e de subsídios previamente preparados por pessoas entendidas. O perigo é que, justamente, por causa de tudo isso aconteça o contrário: que se venha sufocar e perder o que de mais precioso temos e precisamos na LD: nossa criatividade ou abertura ao espírito, ao divino, ao inesperado. Por desenvolver-se na dinâmica do divino, que compõe e move o texto, a LD não é nenhum recurso para outras finalidades, nem mesmo para a evangelização, porque ela mesma é a própria Evangelização; não é, menos ainda, um meio para nos comunicar (com) Deus porque ela própria é o Logos, o Deus mesmo que se faz carne e habita entre nós7. Ela é, pois a fonte, a origem, a seiva do nascer, crescer e maturar de nossa nova existência, expressa com a já surrada palavra “cristã” ou “franciscana”. Isso porque essas palavras que costumamos chamar de “divinas” são de Deus mesmo, isto é, “genes”, sementes do Pai do céu, vivo e verdadeiro. É que na Sagrada Escritura as palavras, as frases, ou textos, os fatos, o tempo, etc. são realidades teológicas e não apenas cronológicas, geográficas ou sociológicas, etc.. Isso significa que não estão na dinâmica das ocorrências (coisas que “correm”, passam), mas de Deus, ou seja: atrás de cada uma delas está (“é”) Deus atuando e falando. São tentativas infinitas e às vezes quase que “desesperadas” ou “loucas” de Deus para encontrar-se com o homem, amá-lo e com ele fazer seu sacrum convivium.
Por isso, quem deve ditar o método de leitura desses escritos é sua natureza, pois diz São Paulo: Ninguém pode conhecer e saber o que há no homem senão o espírito que está no homem, e ninguém pode saber o que é o Espírito de Deus e o que há em Deus, senão o Espírito que é de Deus e é Deus8.
Nesse mesmo sentido é que se expressa também os Lineamenta: O Espírito é a alma e o exegeta da Sagrada Escritura, que é Palavra de Deus posta por escrito sob a sua inspiração (20). Ou seja, não há outro caminho para ler Deus senão “sermos Deus”, isto é, partindo da dinâmica, da graça do espírito de adoção que nos mereceu seu Filho fazendo também de cada um de nós seus filhos queridos.
Vale aqui o dito de Pascal, ao se falar das coisas humanas, diz-se que é preciso conhecê-las primeiro para então amá-las, o que se transformou em provérbio. Os santos, ao contrário, dizem que, ao se falar das coisas divinas, é preciso amá-las primeiro, e que só se penetra na verdade por meio da caridade, o que é uma das sentenças mais úteis9.
Nesse sentido, soa inteiramente em direção oposta o princípio apregoado pela LOP: Não se ama o que não se conhece10. No nível da Vida cristã e franciscana – como, também, no matrimonio – o verdadeiro é o inverso: primeiro existe o amor, a fé, a confiança que leva à necessidade do conhecimento. O mesmo assevera nosso grande São Boaventura ao ensinar o itinerário franciscano da mente para Deus: Se queres saber como isso acontece, interroga a graça, e não a ciência; ao desejo, e não a inteligência; o gemido da oração, e não o estudo dos livros; o esposo e não o professor; Deus e não o homem; a escuridão e não a claridade. Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama e transfere para Deus, com unções suavíssimas e afetos ardentíssimos11.
Textos divinos ou espirituais, portanto, só se compreendem se e quando nos dispusermos a fazer sua leitura a partir de dentro do mistério do encontro que conduz e perfaz o texto e toda a existência de todo vocacionado à vida cristã. É como nos vitrais de uma igreja. De fora, por cima ou de longe, nada se percebe ou se pode captar, nada encanta ou arrebata. É preciso tirar as sandálias, despojar-se de si mesmo. Coisas acima e maiores que nós não podem jamais ser compreendidas por mentes menores, como as nossas. Seria, mais ou menos, como alguém que quisesse iluminar o sol com os raios de uma simples lamparina. O contrário é que é o correto: iluminar a nossa insignificante e apagada mente com o sol divino, Jesus Cristo, luzindo em todas as páginas da Sagrada Escritura.
Conclusão
Partindo do princípio que toda a Sagrada Escritura se rege pelo fervor da gratuidade do enamoramento deve-se realçar que não existe uma LD genérica, igual para todos os fiéis: leigos, sacerdotes e religiosos. Isso porque se trata de uma fala vinda de um Deus que é Pessoa. Consequentemente, sua fala nunca acontecerá a modo de máquina ou robô, para pessoas em geral, mas para cada uma como sendo cada vez única, assim como outrora o fez para Abrão, Isaac, Jacó, Moisés, Nossa Senhora, São Francisco, etc.
Nesse sentido, Francisco é um dos pioneiros de uma LD devidamente adaptada12. Sem medo de errar, assim como com toda a razão se pode e se deve afirmar num Cristo, num Evangelho, numa espiritualidade, numa Mariologia, numa Eclesiologia, numa pastoral ou evangelização franciscana, pode-se e deve-se, também, de igual maneira, falar numa Lectio Divina Franciscana (LDF). Nesse sentido, não pode haver uma única LD. Ou invertendo: tantas serão as “Leituras Divinas” quantas forem as espiritualidades. É o que, aliás, afirma nosso Ministro Geral quando diz que a LOP não é o único método de orar com a Palavra de Deus13. Logo, quem quiser seguir mais de um caminho ao mesmo tempo ou caminho que não seja o seu não chegará jamais a lugar nenhum. Pois, segundo o dito evangélico: Ninguém pode servir a dois senhores ao mesmo tempo.
II. SÃO FRANCISCO E A LEITURA DIVINA
Introdução
Na segunda parte deste artigo queremos ver como Francisco se conduzia na LD.
Toda a vida de Francisco vem pautada por uma profunda e contínua ligação com a Sagrada Escritura, principalmente com o Evangelho. Por isso, tinha tal conhecimento da Palavra que penetrava nas realidades escondidas dos mistérios e o que era inacessível à ciência dos mestres, abria-se a seu afeto cheio de amor (2C 102). Sem ser mestre na arte de falar, ele respondia questões difíceis e, como Jó (Cf. Jó, 28,11), iluminava os pontos obscuros chegando àquilo que o texto escriturístico escondia aos estudiosos14.
Surpresos, com nosso Ministro, perguntamos: Como isso fora possível? São Boaventura responde apontando as seguintes razões: - intensa, profunda e perfeita imitação de Cristo; - prontidão em pôr em prática a palavra ouvida e compreendida; - a unção do Espírito Santo tornara-se seu único Mestre; - a exemplo de Maria ouvia com coração pobre, disponível e cheio de amor.
Por isso com razão afirma Pio XI: Parece que jamais houve homem algum em quem brilhasse mais viva a imagem de Jesus Cristo e em quem fosse mais semelhante a forma evangélica de viver do que em Francisco15.
Aliás, na mencionada Carta (nº 15 a 28), nosso Geral mostra muito bem que Francisco fazia uma LD própria. Pena que logo mais adiante, em vez de exortar-nos a que imitemos nosso seráfico Pai, pede que façamos a LOP (nº 23 a 30).
Tentemos ver, então, como se processa a LD no historiar-se da vida de Francisco.
1. Leitura do divino na raiz da vocação franciscana
Como já assinalamos, Francisco soube fazer uma LD própria. Por isso não encontramos nas FF indícios de que Francisco tenha se exercitado na LD dos monges cartuxos, com os famosos quatro degraus ou passos: leitura, meditação, oração e contemplação.
Além do mais, e também, deve-se notar que, segundo as diversas Legendas ou Vidas, o primeiro livro ou texto “divino” que Francisco encontra, lê e medita, são os acontecimentos de sua vida, sua história, e que envolvem diretamente sua vocação. A LD nasce em Francisco como graça, dom ou exercício da necessidade de ter de responder às inúmeras visitas, surpreendentes toques vindos de uma realidade inteiramente estranha, misteriosa e transcendente a tudo o que até então conhecia e sabia, mas nada fantasiosa.
Nesse sentido, como veremos a seguir, não é propriamente Francisco quem decide fazer LD. Antes da leitura praticada por ele, Francisco é quem se sente procurado, perseguido e, por vezes, até atropelado, por “alguém”, uma pessoa misteriosa que a denomina ora de noiva, ora de Senhora ou Dama Pobreza. A intensidade e a frequência dessa perseguição são de tal dinamismo que Francisco, por fim, não consegue mais resistir-lhe e tem de entrar num processo de busca, leitura, fidelidade e transformação ou conversão cada vez mais radical.
Entre as inúmeras passagens que testemunham esse processo inicial, básico ou elementar, de leitura do divino escolhemos a seguinte:
9Acordando, pois, começou a pensar diligentemente sobre esta visão e, 10assim como na primeira visão quase ficou todo fora de si de alegria, desejando sucesso temporal, 11assim, nesta, recolheu-se em si mesmo, admirando e considerando sua força com tanta diligência que, naquela noite, não quis mais dormir. Ao amanhecer volta às pressas para Assis, sumamente alegre e jubiloso na expectativa da vontade do Senhor [...]. Já transformado na mente, recusa-se a ir para a Apúlia e aspira a conformar-se com a vontade divina16.
Vê-se claramente, por essa passagem que a LD de Francisco se inicia e se assenta como ressonância ou resposta a alguém que o procura por primeiro, a alguém que, para usar palavras da experiência mística de São João, o amou por primeiro17.
Como Maria que, pela insinuação do anjo, vai às pressas ver como estava se realizando em Isabel o milagre de uma maternidade impossível, também Francisco volta às pressas para Assis a fim de encontrar e receber luzes e orientações acerca de um novo e misterioso nascimento seu.
2. Leitura divina e a graça da necessidade da repetição
A dinâmica do enamoramento desemboca na premência da necessidade de ler, ouvir e ver mais e melhor o que já se leu, ouviu e viu anteriormente: a repetição. Essa dinâmica foi sempre fiel companheira de Francisco. Por isso sempre prezou muito o princípio dos antigos: “Non multa sed multum” (“Não muitas coisas, mas muito empenho” e numa tradução livre: Ler, ver, ouvir poucas coisas, ou melhor, uma só, mas com muito empenho, meditação, ruminação, atenção, devoção e amor). Trata-se, pois, de seguir aquela “Pré-disposição franciscana” que indica uma impostação prévia [...] ao redor da qual os pensadores franciscanos, de todas as épocas, raças, tipos e formações convergem no “pouco saber e muita jovialidade”18.
Em outras palavras, Francisco, em vez de correr atrás de muitas coisas ou eventos de sua vida ou de muitas passagens da Sagrada Escritura, detinha-se naquelas poucas que marcaram sua vocação. Por isso, também e até mesmo, era só de vez em quando que lia os livros sagrados, mas o que punha uma vez na mente ficava indelevelmente “escrito em seu coração”. Tinha a memória no lugar dos livros, porque o que o ouvido captava uma só vez não ficava em vão, pois permanecia refletindo com afeto e em contínua devoção. Dizia que era muito mais frutuoso esse modo de aprender e de ler do que ficar folheando milhares de tratados19.
Por isso, agora, não precisamos mais estranhar a resposta que deu ao Guardião quando quis destacar-lhe um frade que diariamente fosse ler para ele um trecho da Sagrada Escritura: Não preciso de mais nada, filho. Conheço o Cristo pobre e crucificado20. Em outras palavras: “Deixa-me em paz, filho, pois ainda não terminei minha lição de casa: recordar e meditar a Paixão do meu Senhor. Pois isso é o meu tudo”.
3. Leitura divina e Fontes Franciscanas
Segundo nossa tradição, enquanto Francisco vivia todos podiam olhar no espelho de sua vida21, pois em pouco tempo tornara-se ele próprio e para toda a Ordem a única “Forma minorum”, o único Espelho da Perfeição, a Palavra, o Evangelho vivo, ou, no dizer de Pio XI, um Cristo redivivo. Após sua morte essa função ou ministério passou para as assim chamadas FF. Ou seja, para que os futuros Irmãos também pudessem se espelhar nesse ícone vivo de Jesus Cristo (Bento XVI) e seu Evangelho, a Ordem ordenou que se redigissem o que hoje se convencionou chamar de FF, também chamadas, às vezes, de “Bíblia Franciscana”. Por isso, nós Frades menores, parafraseando o dito de São Jerônimo acerca da importância e da necessidade da SE para conhecer e amar Jesus Cristo, podemos também dizer que ignorar as FF é ignorar o Cristo de São Francisco, sua espiritualidade, vocação e missão. Consequentemente, não há como o franciscano fazer LD sem ler, reler, meditar os Escritos de nosso seráfico Pai, suas Legendas e Vidas, etc. empenhando-se para entrar em sua divina e santa operação.
A história das FF assemelha-se muito à história da SE. Como essa, no início da Igreja, foi a principal fonte de vida e de formação para os cristãos, também aquelas no início da Ordem, juntamente com a tradição falada, era o único livro onde os Frades buscavam conhecer sua identidade e crescer no espírito puro e originário de sua vocação e missão. Hoje, felizmente, como a Sagrada Escritura, também as FF fazem parte essencial de nossa caminhada na busca de nossa identidade, de nossa formação, vocação e missão. E não precisamos ter nenhum receio de tê-las como tais e fazer delas nossa Leitura Divina. Pois, a própria Igreja assim o recomenda quando diz que para a LD pode-se usar também um texto litúrgico ou uma importante página espiritual da tradição católica. Pois, nestes casos, sempre se trata de um eco fiel da Palavra de Deus que se deve ouvir, e, quiçá, até balbuciar, a maneira dos antigos22.
4. Leitura divina e Ofício divino
Desde os primórdios de sua vocação, Francisco e seus companheiros como verdadeiros homens de Deus23, escolhidos e eleitos pelo seu novo Senhor para reconstruir-lhe a Igreja, iam pelo mundo cantando em alta e sonora voz bendizendo e glorificando a bondade do Altíssimo24. Toda essa louvação culminou, depois, nos inúmeros e admiráveis hinos, orações, cânticos e louvações que Francisco confeccionava, como o famoso Cântico do Irmão Sol e na celebração do Ofício divino.
Nosso Ministro Geral faz muito bem em acentuar que a LOP deve ser considerada preparação ou prolongamento daquilo que acontece na celebração litúrgica25. Só que, como já vimos, Francisco nunca fez LOP. O que fez foi uma LD adaptada. E uma de suas mais expressivas concreções foi fazer o “Ofício divino”. Os autores do mencionado livrinho do CEBI, porém, não pensam assim. Ao falarem do Ofício divino na LOP não só o ignoram, mas até o consideram apenas como um exercício obrigatório e formal [...] lido ou recitado mecanicamente, sem seiva de oração26. Francisco, ao contrário, o tem na mais alta consideração. Vale citar aqui a súplica que fez a frei Elias, Ministro Geral: Faça com que os clérigos digam o Ofício com devoção diante de Deus, não atendendo à melodia da voz, mas sim, à consonância da mente, para que a voz se harmonize com a mente e a mente com Deus. 42E, assim, pela pureza do coração, possam aplacar a Deus e não afagar os ouvidos do povo com a lascividade da voz [...]. A todos aqueles Irmãos, porém, que não quiserem observar essas coisas, não os considero católicos e nem Irmãos meus27.
Neste sentido e para Francisco, Ofício divino ia bem mais além da nossa Liturgia das Horas. Indicava e incluía toda e qualquer oração, mesmo se feita em particular. Oração que não se imbuísse desse espírito não era considerada, propriamente, oração cristã, mas pagã.
Pode-se afirmar que em grande parte a familiaridade de Francisco com “seu” Cristo e com a Sagrada Escritura deveu-se à profunda experiência do Ofício Divino. Por isso, se não tivesse livro para fazê-lo ele o inventava na hora como vem muito bem relatado no famoso capítulo VIII dos Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus Companheiros28. Não se pode ignorar, além do mais, a composição do mais longo e mais profundo texto teológico que saiu de sua mente e de suas mãos: o “Ofício da Paixão do Senhor”, bem como do “Ofício dos Pai-Nossos” inventado para os Irmãos que não soubessem ler.
5. Leitura divina no eremitério do martírio da contemplação da paixão da cruz de cada dia
Finalmente, a LD em Francisco alcança seu ponto mais profundo e elevado, ao mesmo tempo, no eremitério do martírio da contemplação da paixão da Cruz. Em outras palavras a LDF para chegar ao seu auge passa necessariamente pelo caminho do eremitério do calvário e da cruz do nosso cotidiano.
Não se costuma chamar Francisco de mártir porque sua morte deu-se de modo incruento. Todavia, os Frades que acompanharam sua trajetória espiritual não receiam de tê-lo como tal, principalmente, por causa de sua profunda, intensa, contínua e amorosa identificação com os sofrimentos da Paixão de seu amado Senhor. Pois, se desde o encontro com o Crucificado de São Damião carregava as chagas e os sofrimentos da Paixão de seu Senhor em sua alma, não muito antes de morrer, nosso Irmão e pai apareceu crucificado, carregando em seu corpo as cinco chagas que são verdadeiramente os estigmas de Cristo29.
Hoje, costuma-se entender eremitério como um lugar ameno, agradável, separado do barulho e de todo o tipo de incômodos e contrariedades, e contemplação, por sua vez, como busca de um estado de calmaria, “paz” interior e exterior, de vivências e consolações, muitas vezes, carregadas de fortes emoções, mas quase sempre um tanto vagas, abstratas e volúveis. Nada dessas compreensões aparecem na contemplação nem de Cristo e nem de Francisco.
A exemplo de Cristo, também Francisco não quis outro eremitério senão o cotidiano-ordinário próprio da vida apertada, da porta estreita da pobreza e da Paixão do seu Senhor. Isso é tudo para Francisco: seu amor, sua vida, seu eremitério, sua contemplação, seu martírio, sua LD.
Conclusão
A questão que orientou todas essas reflexões,ou seja: “Por que não poso fazer LOP?”, tem como resposta simples e única: porque ela segue outro caminho ou espiritualidade, diversos do caminho e da espiritualidade abraçamos e professamos.
Como resposta ao toque do enamoramento, a LDF assemelha-se à dinâmica do casamento. Também nós quando fomos tocados por ESTA VIDA, e chamados a segui-la, um novo olho, um novo senso nasceu do nosso interior: o olho ou senso da Paixão de JC pobre e crucificado. Por isso, franciscano não pode e nem deve mais fazer nenhuma outra LEITURA de tudo, nem de nada nem de si nem das pessoas, com suas lutas e sofrimentos, nem dos acontecimentos nem das criaturas nem da Igreja e nem mesmo de Deus senão com esse olho, com esse senso: o olho e o senso franciscano.
Por tudo isso, espero e tenho certeza que meu caríssimo Geral não se oporá a que eu em vez de atender e seguir sua exortação para que faça a LOP continue me exercitando na LDF.
E, finalizando, porque não imitar a Igreja que fez um Sínodo com o tema “A Palavra de Deus na vida e na Missão da Igreja”? Por que não fazer também nós (OFM ou toda a Família franciscana) um Capítulo Geral com o tema: Fontes Franciscanas na Vida e Missão da Ordem?
1 GPMS 24.
2 Documento da Cúria romana destinando principalmente aos membros do Sínodo e que tem como finalidade apresentar o estado da questão sobre o importante tema da Palavra de Deus (Prefácio). Esperamos ansiosamente o documento conclusivo desse Sínodo que deverá ser publicado em breve pelo nosso Papa.
3 Leitura orante da Bíblia, roterios para reflexão, XII, CEBI, São Leopoldo, 2001. Deve-se dizer, logo, porém, que, muitas vezes, em certos ambientes e publicações usa-se a expressão Leitura orante da Palavra, mas que, em verdade pensam, falam e fazem Lectio Divina, como, por exemplo, o folheto de Frei Carlos Mesters: Leitura orante da Palavra, publicado pela CRB. Neste caso não há nenhum problema pois o que muda é apenas o nome, mas o exercício é o mesmo da Lectio divina.
4 Leitura orante da Bíblia, pág. 14
5 Às vezes, em vez de LOP encontra-se, também o título “Leitura orante da Bíblia”, como faz o CEBI.
6 GPMS 23
7 Cf. Prólogo de São João
8 1Cor 2,11
9 Pascal, "Pensées et opuscules", Paris, 1912, p. 185, citado por Heideger M. em Ser e Tempo, Vozes, 1988, pág. 194). O mesmo pensamento já expressava Sto. Agostinho: "Non intratur in veritatem, nisi per charitatem (“Não se entra na verdade senão pela caridade”. Agostinho, "Opera", Migne, P .1. XLII, "Augustinus" VIII, "Contra Faustum", lib. 32, cap. 18, idem.
10 LOB pág. 21
11 Ofício das Leituras da Festa de São Boaventura.
12 Lineamenta 5
13 GPMS 23
14 GPMS 5
15 ROFS, Breve apostólico
16 LTC 6,9-13. A passagem se refere às duas visões que Francisco teve no caminho de Espoleto quando ia para a Apúlia a fim de fazer-se um grande e nobre cavaleiro.
17 1Jo 4,19
18 Harada, Frei Hemógenes, De estudo, anotações obsoletas, a busca da identidade humana e franciscana, IFAN-Vozes, 2009, pág. 235
19 2C 102, 4-5
20 2C 105,5
21 Cf. 1C 90,3
22 Orientações sobre a Formação nos Institutos Religiosos, 1990, 76
23 Cf. LTC 33
24 Cf. LTC 33 1-2
25 GPMS 14
26 CEBI pág. 18
27 CO 41-43
28 Nesse Ofício divino, criado na hora, Francisco, a fim de usar o tempo para o louvor de Deus, ordena a Frei Leão que repita o que ele proferia à frente. E começou dizendo assim: “Ó Frei Francisco, tu fizeste tantos pecados no mundo que és digno do inferno”. E tu, Frei Leão, respondas: É verdade que mereceste o profundíssimo inferno". 4Frei Leão, o puríssimo, respondeu com simplicidade columbina: "De boa vontade, pai; começa em nome do Senhor". E São Francisco começou a dizer: "Ó Frei Francisco, tu fizeste tantos pecados no mundo que és digno do inferno". 5E Frei Leão respondeu: "Deus fará por ti tantos bens que irás para o paraíso". 6São Francisco, porém, disse: "Não digas assim, Frei Leão; mas, quando eu disser: Ó Frei Francisco, tu fizeste tantas obras iníquas contra Deus que és digno de ser maldito; tu, assim respondas: És digno de seres contado entre os malditos". E Frei Leão disse: "De boa vontade, pai". Só que Frei Leão não conseguiu em nenhuma vez responder outra coisa e sempre de novo senão aquela resposta que o Senhor lhe revelava, oposta a que Francisco propunha.
29 Carta de Frei Elias 17

Advento: Como veio, Ele também vem e virá

Segundo nossa Liturgia, o Tempo do Advento se destina a duas importantes preparações. Primeiramente queremos preparar-nos para celebrar mais uma vez a Vinda de Cristo que, assim como veio outrora, nascendo do seio da Virgem Maria, virá mais uma vez em nossos corações na noite do Natal. Mas, o Advento quer recordar e exortar a que nos preparemos, também, para a Segunda vinda de Cristo que acontecerá nos fim dos tempos. Em ambas as preparações, porém, soa sempre, que nosso Deus, é um Deus que vem. Nesse Tempo, mais do que em outras ocasiões do ano, a Liturgia faz ressoar aquela única toada de todas as páginas do Antigo Testamento: Dizei aos que estão desanimados: “Coragem! Não tenhais medo! Eis o vosso Deus: Ele traz o castigo, a recompensa divina. Ele virá em pessoa para vos salvar (Is 35,4).

Mas, no dizer de São Paulo, chegada a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher e sob a Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos (Gl 4,4-5). Essa adoção, porém, ainda não se manifestou em plenitude. Precisamos desejá-la, buscá-la, amá-la e, acima de tudo, cultivá-la. Pois, de novo, diz São Paulo: No presente vemos por um espelho e obscuramente; então veremos face a face. No presente conheço só em parte; então conhecerei como sou conhecido (1Cor 13,12).

Quando se espera alguém não se espera de mãos vazias e muito menos de coração amargurado. Por isso, a Igreja nos solicita a que esperemos vigilantes e jubilosos o Natal e a segunda vinda do Senhor em cada pessoa ou acontecimento de nossa vida. Vigiar nossos sentimentos, pensamentos e atitudes para que sejam cada vez mais pensamentos, sentimentos e atitudes de filhos de Deus.

Um coração jubiloso porque temos a certeza de que nossa esperança não será em vão; que haveremos de vencer o ódio, a vingança, o desânimo, a divisão, a guerra como Ele venceu. Um coração jubiloso que se concretiza em exercícios bem concretos como a participação nas Missas dominicais, na Novena do Natal em Família, na Celebração penitencial (Conversão!) e, acima de tudo, empenhando-nos em viver e concretizar a atitude de filhos de Deus: mansos, humildes, disponíveis, misericordiosos e pacientes, seja em casa, com os familiares, seja na Comunidade, na Escola ou no local de trabalho.

Frei Gabriel Brancher e Frei Dorvalino Fassini