domingo, 25 de julho de 2010

A Indugência da Porciúncula

Quando éramos seminaristas, em Taquari, na década de 50 do século passado, todos os anos, por ocasião do dia 2 de Agosto, éramos conduzidos, turma por turma, para a capelinha interna dos freis. Lá, orientados pelo frei que nos acompanhava, rezávamos uma série (não me lembro quantos) de Pai Nossos. Terminada uma série saíamos da capelinha, dávamos uma pequena volta e retornávamos para mais uma série de Pai Nossos, e assim por diversas vezes e todos os anos. Explicaram os freis que em cada visita era uma graça ou indulgência que se lucrava. Mais tarde fiquei sabendo que este exercício espiritual, chamado “Indulgência da Porciúncula”, fora um privilégio que Francisco adquirira para a igrejinha da Porciúncula, situada perto de Assis, e que, posteriormente, o mesmo privilégio fora estendido a todas as igrejas próprias da Ordem.

Mas, o que era ou o que é essa Indulgência, nunca ficou muito claro para mim. Há dias, porém, folheando a nova edição italiana das “Fonti Francescane”, encontrei, pela primeira vez, o famoso documento acerca desse Privilégio. Trata-se do “Diploma do Bispo Teobaldo de Assis”, datado de 1310 e cuja tradução oferecemos aos interessados. Antes do texto propriamente dito, porém, é importante que se leia a pequena introdução historiográfica dos editores das mencionadas “Fonti Francescane”.

“A Indulgência da Porciúcula, evento de suma importância para a história e consciência da Ordem minorítica, e objeto de longas discussões historiográficas acerca de sua autenticidade histórica, encontra sua documentação mais objetiva no Bispo Teobaldo de Assis. Este Bispo recolheu e sintetizou os testemunhos anteriores, tidos historicamente como fundados, particularmente, aqueles de Benedito e Rainério d´Arezzo, de Tiago de Coppoli e de Pedro Zalfani, sem extrapolar a medida da narrativa com excessivos elementos miraculosos. Estes testemunhos nos evocam uma significativa fonte documentária, hagiográfica, e, na esteira do jubileu do milênio de 1300, no tempo de Bonifácio VIII (1294-1303), rica em aspectos pastorais, fundada, de um lado sobre a fidelidade à intuição de Francisco e, de outra parte, sobre a evolução institucional da Ordem no seio da Igreja.

Aqui se propõe o texto completo do documento traduzido a partir da recente edição paleográfica feita sob os cuidados de Stefano Brufani a partir do original, onde ainda se conserva pendente o selo de cera; documento esse conservado no arquivo público do Estado de Perúsia, Corporações religiosas supressas, São Francisco ao Prado, pergaminho 56 (1310, agosto, 10), descoberto em 1964 por Roberto Abbondanza. Cf. S. Brufani, Il diploma del vescovo Teobaldo d´Assisi pel indulgenza della Porciuncola, II (2000), pp. 43-136, texto pp. 119-136; veja-se, também, M. Sensi, Il perdono di Assisi, S. Maria degli Angeli-Assisi (PG) 2002”.

Vamos, então, ao texto do mencionado documento ou carta do Bispo Teobaldo:

“Irmão Teobaldo, por graça de Deus, Bispo de Assis, aos fiéis cristãos que lerem esta carta, saúde no Salvador de todos..

Por causa de alguns faladores que, impelidos pela inveja, ou talvez pela ignorância, impugnam desaforadamente a indulgência de Santa Maria dos Anjos, situada perto de Assis, somos obrigados a fazer esta comunicação a todos os fiéis cristãos. Através da presente carta, queremos comunicar o modo e a forma desse benefício e como o bem-aventurado Francisco, enquanto estava vivo, o impetrou ao senhor papa Honório.

Morando, o bem-aventurado Francisco, junto à Santa Maria dos Anjos da Porciúncula, o Senhor, durante a noite, lhe revelou que se dirigisse ao sumo Pontífice, o senhor Honório, que temporariamente se encontrava em Perúsia. A finalidade era impetrar-lhe a indulgência para a mesma igreja de Santa Maria da Porciúncula, há pouco restaurada por ele mesmo. Francisco, levantando-se, de manhã, chamou frei Masseo de Marignano, companheiro seu, com o qual morava, e se apresentou diante do mencionado senhor Honório, e disse:

- Santo Padre, há pouco acabei de restaurar para o senhor uma igreja dedicada à Virgem Mãe de Cristo. Suplico à vossa Santidade que a enriqueçais com uma indulgência, mas, sem a necessidade de nenhuma oferta em dinheiro.

O Papa respondeu-lhe:

- Não convém fazer uma coisa dessas. Pois, quem pede uma indulgência precisa que a mereça dando uma mão. Mas, diz-me para quantos anos você a quer, e quanta indulgência lhe deva conceder.

São Francisco replicou-lhe:

- Santo Padre, sua santidade queira-me dar não anos, mas, almas.

E o senhor Papa respondeu:

- De que modo quer almas?

E o bem-aventurado Francisco declarou:

- Santo Padre, se aprouver à sua santidade, quero que todos quantos se achegarem a essa igreja, confessados e arrependidas e, como convém, absolvidos pelo sacerdote, se tornem libertados da pena e da culpa, no céu e na terra, desde o dia do Batismo até o dia e a hora de sua entrada na mencionada igreja.

O santo Padre acrescentou:

- Isso que pede, Francisco, é muito. E não é costume da Cúria romana conceder semelhante indulgência.

Então, o bem-aventurado Francisco respondeu:

- Senhor, não estou pedindo isto a partir de mim, mas, a partir daquele que me mandou, o Senhor Jesus Cristo.

Diante desse argumento, o senhor Papa concluiu imediatamente, dizendo por três vezes:

- Agrada-me que tenhas essa indulgência.

Os senhores Cardeais presentes, porém, intervieram:

- Vê, se o senhor der essa indulgência, estará destruindo a indulgência do além mar, bem como, virá destruída e considerada nula aquela dos Apóstolos Pedro e Paulo.

O senhor Papa respondeu:

- Agora já a damos e a concedemos; não podemos e nem convém que se destrua o que foi feito. Mas, a modificaremos, de modo que fique limitada apenas para um dia.

Então, chamou São Francisco e disse-lhe:

- Portanto, de hoje em diante, concedemos que, qualquer um que for e entrar na mencionada igreja, bem confessado e contrito, será absolvido da pena e da culpa; e queremos que isso valha todos os anos por somente um dia, das primeiras vésperas até o dia seguinte.

O bem-aventurado Francisco, de cabeça inclinada, começou a retirar-se do palácio. O senhor Papa, então, como o visse saindo, chamou-o dizendo-lhe:

- Ó, simplesinho, aonde vai? Que documento leva desta indulgência?

Respondeu Francisco:

- A mim basta sua palavra. Se for obra de Deus, Deus mesmo deverá manifestá-la. Não quero nenhum outro documento desse privilégio senão este: que a carta seja a bem-aventurada Virgem Maria, o notário Jesus Cristo e os anjos as testemunhas.

Depois disso, Francisco, deixando Perúsia, retornou a Assis. No caminho repousou um pouco, juntamente com seu companheiro, num lugar chamado Colle, onde havia um hospital de leprosos, e lá passou a noite. De manhã, acordado e feita a oração, chamou o companheiro e disse-lhe:

- Frei Masseo, digo-lhe, da parte de Deus, que a indulgência a mim concedida através do sumo pontífice está confirmada pelo céu.

Tudo isso foi contado por frei Marino, sobrinho do mencionado frei Masseo, que frequentemente o ouviu da boca do tio. Esse frei Marino, ultimamente, perto do ano de 1307, repleto de dias e de santidade, repousou no Senhor.

Depois da morte do bem-aventurado Francisco, frei Leão, um dos seus companheiros, homem de vida integralíssima, passou adiante esse fato, assim como o havia recebido da boca de São Francisco; e assim, também, frei Benedito de Arezzo, um dos companheiros de São Francisco, e frei Rainério de Arezzo contaram, tanto para os frades como para os seculares, muitas coisas referentes a essa indulgência, como as tinham ouvido do mencionado frei Masseo. Muitos desses ainda estão vivos e confirmam todas essas notícias.

Não pretendemos, pois, escrever com que solenidade essa indulgência foi tornada pública, durante a consagração da mesma igreja efetuada por sete Bispos. Vamos tão somente referir aquilo que Pedro Zalfani, presente à cerimônia, falou diante do Ministro frei Ângelo, diante de frei Bonifácio, frei Guido, frei Bartolo de Perúsia, e outros frades do lugar da Porciúncula. Contou ele que esteve presente à consagração da mencionada igreja no dia 2 de Agosto, e ouviu o bem-aventurado Francisco que pregava diante daqueles Bispos segurando na mão um documento, e dizia:

- Quero mandar-vos todos para o céu. Anuncio-vos a indulgência que recebi da boca do sumo pontífice: todos vós que hoje vindes e todos aqueles que virão cada ano, neste dia, com um coração bom e contrito, obterão a indulgência de todos os seus pecados.

Fizemos essas considerações acerca da indulgência por causa daqueles que a ignoram. Assim não podem mais usar como desculpa a ignorância. E, acima de tudo, o fazemos por causa dos invejosos e faladores. Estes, em alguns lugares, procuram destruir, suprimir e condenar aquilo que, toda a Itália, a França, a Espanha e outras províncias, tanto de cá como de lá dos montes, ou melhor, o próprio Deus, em reverência à sua santíssima Mãe (pois, como se sabe, a indulgência é dela), quase todos os dias, vem revelando, engrandecendo, glorificando e espalhando com frequentes e manifestos milagres.

Como ousarão invalidar, com suas funestas persuasões, aquilo que já há tanto tempo, diante da Cúria romana, permaneceu com toda sua validade? Pois, também em nosso tempo, o próprio senhor Papa Bonifácio VIII enviou para essa igrejinha seus magníficos embaixadores para que, por sua vez, no dia da indulgência, nos pregassem com toda a solenidade. Às vezes, enviou até Cardeais. Vindos pessoalmente para celebrar a indulgência e, na esperança de receber o perdão, a aprovaram como verdadeira e certa com sua própria presença.

Diante do testemunho de todas essas coisas, e na fé mais certa, assinalamos a presente carta com nosso selo. Dada em Assis, na festa de São Lourenço, no ano do Senhor de 1310”.

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