sábado, 22 de setembro de 2012

Vem e segue-me, segundo São Francisco

Frei Dorvalino Fassini, OFM

Ninguém duvida que o “Vem e segue-me” (chamado, visita ou encontro) de Cristo sempre foi e é o único princípio, isto é, a experiência de uma iluminação que pega como que de surpresa, o toque que co-move qualquer vocacionado na busca de um novo sentido da vida. Clássico para nós é o chamado que Francisco experienciou no encontro com o Crucificado de São Damião. Se não houvesse chamado, encontro, etc. não haveria vocação e, muito menos, qualquer reviravolta, conversão ou seguimento. A questão, porém, é: como se compreende esse princípio, esse chamado?

Em Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros, cap. 4, encontramos uma compreensão um tanto inusitada e surpreendente, pelo menos para nós modernos ou atuais. O chamado vem assim expresso: Porque o nosso bem-aventurado pai Francisco, tanto ele como os seus, foram chamados por Deus, da cruz para a cruz. Como conseqüência temos: Por isso, ele e os seus demais bem-aventurados primeiros companheiros eram, com razão, vistos e de fato eram homens do Crucificado (1). E a seguir, o próprio texto trata de demonstrar como eles viviam o seguimento:
> Carregando a cruz no vestir-se e no comer e em todos os seus atos, etc. (2).
> Indo pelo mundo, peregrinos e forasteiros, nada levando consigo a não ser Cristo (3). 
> Bernardo, munindo-se da cruz de Cristo e unido à virtude da obediência se dirigiu a Bolonha, e ali, como verdadeiro discípulo de Cristo, sustentava insultos e perseguições dos habitantes de Bolonha; exercitava-se diariamente na aprendizagem da sustentação das contrariedades e, depois de constituída a fraternidade, ele se retirou para lugares e tarefas mais difíceis.

Assim, com esse modo de assentamento no chão de contrariedades, opróbrios e humilhações, os frades ocupam muitas localidades nos arredores, ou seja, evangelizavam.

Tentemos examinar esses itens brevemente, para ver a lógica do Seguimento franciscano. À primeira vista, todas essas situações e ações parecem ser apenas atos exagerados de uma penitência ou ascese de uma espiritualidade de perfeição e santificação subjetivo-personalista dos medievais, interessada no seu próprio “eu”, pouco ou nada tendo a ver com a realidade objetiva do bem comum e própria, chamada cristianismo ou franciscanismo.



Assim, o que está relatado em Atos do Bem-aventurado Francisco..., costumamos ler, sem maiores reflexões, como uma simples manifestação das virtudes e da santidade do sujeito ou indivíduo Bernardo. Bom para ele, mas não para nós, hoje. Em outras palavras: exercícios penitenciais e ascéticos da busca de um engrandecimento espiritual de si mesmo, bem diferente do princípio comunitário proposto por João Batista: É preciso que Ele cresça e que eu diminua.

Apesar disso, o texto parece insistir e destacar um modo de ser que é decisivo para a compreensão do espírito de São Francisco e de seus primeiros companheiros acerca do chamado franciscano. O ponto sobre o qual queremos nos concentrar é esse modo de ser, que não aparece explicitado na sua estruturação própria se apenas o classificarmos como ascese e penitência no sentido usual, nosso, moderno. 

Ora, partindo do próprio texto, o princípio soa muito límpida e claramente: o centro de nosso chamado é buscar, imitar, seguir Jesus Cristo crucificado e não a busca de virtudes, de uma moral, de uma espiritualidade, piedade, devoção, ascese ou penitência, na sua compreensão usual, isto é, como expressão de um engrandecimento ou a santificação da própria pessoa. Para um medieval, seguir Jesus Cristo para engrandecimento de si mesmo ou para exaltação de sua própria pessoa seria algo muito feio, vil e indigno da nobreza de um cavaleiro, dama ou qualquer homem, muito menos para um cristão. É como no casamento ou na amizade. Além de vergonhoso, casar com alguém ou ser amigo só para subir de status ou obter fortunas e vantagens pessoais estaria ofendendo gravemente não apenas seu cônjuge, seu amigo mas, também, a natureza do próprio amor, da amizade que é de serem gratuitos, generosos, sem o mínimo de interesse próprio. Assim, Bernardo não busca propriamente a paciência, humildade, penitência, pobreza, sacrifícios, enfim, para alcançar sua santidade ou grandeza espiritual. Todas essas "coisas espirituais" são apenas o exercício, corpo a corpo, da sua busca que é ser, i. é, já estar no embalo do chamado (da cruz) e tornar-se (vir-a-ser para a cruz) seguidor, portanto, identificar-se com Jesus Cristo Crucificado. Isso significa: para Bernardo, Francisco e seus primeiros companheiros, por mais valiosa que seja uma virtude, santidade ou o que quer que seja, se não tiver o carimbo, o signo, o cunho, a pregnância da Cruz, i. é, a busca da identificação com Jesus Cristo crucificado, com seu espírito e modo de ser, não tem valor. A exemplo dos fariseus, estaria apenas buscando a justificação e a exaltação de seu próprio eu, Pois, quem constitui o ser “espiritual” das "coisas espirituais", que costumamos enumerar corno pertencentes à santidade (rezar, vida fraterna, pobreza, obediência, castidade, etc. etc.), quem dá a seiva crística a tudo isso não é outro senão o vigor que vem do toque, da afeição e compaixão do próprio Crucificado. E é esse o significado do princípio, do fermento que impregna toda a massa da existência de Francisco, Bernardo e companheiros, expresso com a frase: Carregando a cruz no vestir e no comer e em todos os seus atos, desejavam mais os opróbrios de Cristo do que as vaidades do mundo e as lisonjas enganosas; por isso alegravam-se pelas injúrias e entristeciam-se pelas honras (1-2)

Assim, enquanto na espiritualidade dos últimos séculos segue-se Cristo para santificar-se, tornando-se como que um campeão ou herói do cristianismo, na espiritualidade de Francisco e Bernardo segue-se Cristo crucificado apenas por Ele mesmo, por causa Dele, a fim de que Ele seja conhecido e engrandecido nele (no seguidor), nos outros e no mundo. Enfim, numa linguagem evangélica: para que o Reino Dele seja conhecido e amado. Uma coisa é rezar para sermos bons ou santos e outra, bem diferente, procurar ser bom ou santo para rezar. Na primeira busca-se a si mesmo, fazendo uso até do que se tem de mais sagrado – o próprio Senhor, a oração – enquanto que na segunda o que se quer é tão somente seguir, imitar, converter-se no e para o Senhor. No primeiro caso o importante sou eu, enquanto que no segundo é Ele, o Senhor. Essa é a dinâmica da Cruz tão bem expressa nesse capítulo dos Atos do Bem-aventurdo... e no famoso capítulo dos Fioretti, a “Perfeita Alegria”.

Trata-se, enfim, de re-atualizar o princípio da própria Encarnação, segundo o qual Cristo “vendeu” sua santidade e até mesmo sua divindade para poder comungar de nosso frágil, inconstante e infiel amor. Ele, a exemplo do grão de trigo se “perde” (Jo 12,24) ou “faz-se pecado” (2Cor 5,21), tão somente para ganhar-nos; se diminui para que possamos nós sermos engrandecidos com a glória de filhos de Deus. Sua perda, porém é seu ganho, sua maldição sua glória. Eis, enfim, o por quê Francisco, Bernardo e seus Companheiros se sentiam chamados por Deus, da cruz e  para a cruz.

Em louvor de Cristo. Amém!

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