domingo, 30 de outubro de 2011

Ecos da celebração do Espírito de Assis

ou A peciência de Evangélica segundo Francisco

[Frei Dorvalino Fassini, OFM]

Entre as primeiras caracterizações ou definições do carisma franciscano costuma-se colocar a penitência evangélica. “Somos penitentes de Assis”, respondiam os primeiros frades ao serem interrogados acerca de sua origem (Cf. LTC 37).

Só que ser penitente para Francisco em vez do caminho dos fariseus que, através de seus exercícios e sacrificações, buscam sua auto-realização, significa percorrer o jubiloso caminho de retorno do filho pródigo para sua origem, o paraíso perdido, a casa do Pai, inaugurado pela Paixão do Filho do Homem, Jesus Cristo, pobre crucificado, o novo Adão.

Por isso, ao perpassarmos todos os momentos da vida de Francisco haveremos de perceber o júbilo não do herói que busca seu próprio engrandecimento, mas a perfeita alegria do caminho das bem-aventuranças que culmina e se consuma no alto do Gólgota quando Cristo exclama, sumamente feliz e realizado: “Tudo está consumado”.

Consequentemente, a penitência evangélico-franciscana, antes do aspecto de sacrificação, deve ser compreendida como a grande, profunda e radical transformação – conversão – do mundo todo, da humanidade toda, inaugurada por Jesus Cristo e continuada pelo seu Espírito: inauguração de um novo Céu e de uma nova Terra, o Reino de Deus ou dos céus no meio de nós, como costumava proclamar o Senhor em seus sermões pela Palestina.

Isso tudo significa que, segundo Francisco, a penitência evangélica, entendida como o júbilo do filho pródigo que, tocado pela misericórdia do Pai, põe-se no caminho da volta para a casa paterna, não se restringe apenas a algumas pessoas, no caso os cristãos, muito menos a um grupo restrito que se dedica a sacrifícios e penitências(1). Trata-se, antes, de um dom semeado no âmago mais profundo de cada criatura, de cada homem e de cada acontecimento, no coração, enfim, de toda a história da humanidade. Não somos, portanto, os únicos penitentes e nem mesmo os melhores. Mas, a nós seguidores de São Francisco, é entregue e confiado este carisma como missão ou profissão específica e oficial por parte da Igreja.

Francisco vê na penitência evangélica a “exultatio” (exultação), o júbilo dos filhos pródigos – a humanidade toda - que, tocados pela misericórdia do Pai, se animam a pôr-se no caminho do retorno ao Paraíso perdido da casa paterna. Eis o grande princípio do qual nasce, prospera e amadurece toda a nova vida de Francisco e de toda aquela primeira geração de frades, clarissas e irmãos e irmãs da Terceira Ordem.

Recordemos que foi com este entusiasmo que Francisco iniciou sua conversão ou vida de penitente, desligando-se do mundo para entregar-se inteiramente a Jesus Cristo e seu Evangelho: Ouvi todos e entendei-me! Até agora, chamei Pedro de Bernardone meu pai, mas porque me propus servir a Deus, devolvo-lhe o dinheiro, por cuja causa estava perturbado, e todas as vestes que obtive com seus bens, querendo sem demora dizer: Pai nosso que estás nos Céus e não pai Pedro de Bernardone(2).

Não esqueçamos, também, que o convite à misericórdia e ao amor - coração da penitência evangélica - perpassa todo o ministério da Boa Nova de Jesus: Ide e aprendei o que significam as palavras: Quero misericórdia e não sacrifícios(3). E é bem esse o tom que perpassa toda a vida de Francisco. Neste ponto, a compreensão que Francisco tem de penitência é tão originária quanto originária é a Boa Nova de Jesus Cristo. E como essa também aquela só é compreensível pela fé. Pois, como ensina Pascal, ao se falar das coisas humanas, diz-se que é preciso conhecê-las primeiro para então amá-las, o que se transformou em provérbio. Os santos, ao contrário, dizem que, ao se falar das coisas divinas, é preciso amá-las primeiro, e que só se penetra na verdade por meio da caridade, o que é uma das sentenças mais úteis(4).

Esse princípio exultante e jubiloso do penitente evangélico vem expresso de diversas formas. Ele aparece, por exemplo, quando, na famosa Carta aos Fiéis proclama a bem-aventurança dos que odeiam seus corpos com vícios e pecados para receber o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Recordemos que é esse mesmo princípio que o Senhor, no sermão da montanha, estabelece como caminho para o sumo da felicidade, da bem-aventurança e da realização dos seus seguidores(5).

O júbilo aparece, ainda, através dos verbos que expressam a concretização dessa penitência: amar e receber o Senhor [...], fazer frutificar [...], trazer no coração o Senhor [...], ser filho do Pai celeste [...], etc., culminando na jubilosa exclamação: Oh! Quão felizes e benditos são estes e estas...

A tonalidade jubilosa desta Vida e desta Regra, porém, brilha com toda a sua intensidade e sublimidade quando, na mesma Carta, fala da familiaridade do penitente com as Três Pessoas divinas. Familiaridade que nos torna esposas, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo; familiaridade que nos dá a ventura de “ter” no céu “um Pai”, um “esposo”, um “irmão” e até mesmo um “filho”.

Até mesmo sua morte em vez de choro foi recheada de alegria e festa, pois, quando o santo viu que sua hora estava chegando mandou trazer um pão, abençoou-o e partiu-o, dando um pedacinho para cada companheiro presente, querendo assim, a exemplo do seu Senhor celebrar, também ele, a alegria da passagem dessa vida para junto do Pai. Quis, assim, passar em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte, convidando todas as criaturas ao louvor de Deus pedindo aos frades que lhe entoassem o Cântico das Criaturas, exortando para esse louvor até a morte, terrível e aborrecida por todos, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a a ser sua hóspede: Bem-vinda minha irmã morte! (Cf. 2C 217).
  1. Acerca da retumbância desse júbilo leia-se Lc 15,22-24: Mas o pai disse aos seus servos: “Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e calçados nos pés; trazei também o bezerro, cevado e matai-o; comamos, e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado”. E começaram a regozijar-se.
  2. LTC 20,3.
  3. Mt 9, 13.
  4. Pascal, "Pensées et opuscules", Paris, 1912, p. 185, citado por Heideger M. em Ser e Tempo, Vozes, 1988, p. 194. O mesmo pensamento já expressava Sto. Agostinho: "Non intratur in veritatem, nisi per charitatem (“Não se entra na verdade senão pela caridade”. Agostinho, "Opera", Migne, P .1. XLII, "Augustinus" VIII, "Contra Faustum", lib. 32, cap. 18, idem.
  5. Cf. Evangelho das bem-aventuranças (Mt 5,1-12 segundo o qual Cristo conclui afirmando: Alegrai-vos e exultai, porque grande será a vossa recompensa nos céus).

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