sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O SER DO SER FILHO DE DEUS SEGUNDO SÃO FRANCISCO


Pensamentos soltos e desajeitados para a Festa de São Francisco

Frei Dorvalino Fassinio, OFM

Se há algo que angustia e apaixona o homem de todos os tempos, pelo menos para quem vive um pouco além da superfície da vida, das coisas e dos acontecimentos, é a questão que diz respeito a si mesmo, sua existência: O que é o homem? Qual sua origem, seu destino, vocação e missão? Enfim, qual o sentido da vida e de tudo o que existe?

Muitas foram as tentativas que, desde os primitivos pré-socráticos, até hoje, se fizeram para encontrar e dar uma resposta digna e adequada a essa pergunta. Muitos escolhem ou elegem algo para que se transforme “no amor de sua vida”: dinheiro, fama, diversão, comida, sexo, futebol, política, ciência, pastoral, pátria, família e até mesmo uma religião, um deus. Em verdade, nada disso é o sentido da vida, embora todos esses “amores” possam, de uma ou de outra forma, dar um sentido à vida.

Nosso seráfico pai não se escapou dessa questão. Depois de buscar e percorrer caminhos que o levassem a plena realização de sua vida tem de suportar uma longa crise de sem saber o que fazer. Porém, num dos momentos mais comoventes e radicais de sua conversão, diante do pai, do Bispo, autoridades e povo de Assis, Francisco, depois de desnudar-se todo e inteiramente de todos os sentidos da vida que andou procurando e vivendo, exclama: Ouvi todos e entendei-me. Até agora chamei Pedro de Bernardone meu pai, mas, porque me propus servir a Deus, devolvo-lhe o dinheiro [...] para dizer sem demora: Pai nosso que estás nos céus e não mais ‘pai Pedro Bernardone’ (LTC 20).
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Essa passagem serve para ilustrar o sentido de nossa vocação humana: vir a ser filho de Deus, o Pai do céu. Ser filho de Deus, porém, antes de fato ou ocorrência, um dado ou coisa pronta, existe como tarefa, com-vocação, busca, questão. Como é essa busca? Como caminho de caminheiro, isto é, como busca da novidade do desconhecido no qual já estamos e somos.

Desde que, no paraíso terrestre, decaiu na busca e edificação de sua identidade de ser filho de Deus, sendo verdadeiramente homem e não “deus”, agora para reconquistá-la o mesmo homem não tem outra saída senão percorrer o caminho de retorno, de volta, assumindo seu verdadeiro humano que jaz perdido no fundo mais profundo de seu ser.

Esse caminho, primeiramente presente em forma de promessa, no AT, é inaugurado definitiva e realmente, em e para todos os homens, em e para todas as criaturas pelo Verbo eterno do Pai, o por meio do qual todas as coisas foram feitas (Jo Pró), que, descendo do trono real, para o útero da Virgem Maria (Ad I 16-18), ilumina todo o homem que vem a este mundo (Jo Pró.). Assim, o ser do ser filho de Deus só pode vir de dentro do nosso humano como pérola preciosa que, para aparecer como tal, precisa ser cuidadosa e pacientemente trabalhada, esmerilhada, ou, como o ouro que, para vir a ser verdadeiramente ouro, precisa passar pala prova do cadinho (Zc 13,9).

Assim, quando – e tão somente - o homem tiver percorrido do começo até o fim esse processo verá surgir do “seu” íntimo mais íntimo sua verdadeira identidade: o ser do ser filho de Deus. Só então poderá exclamar como Cristo na Cruz: tudo está consumado (Jo 19,30). Esse percurso vem assinalado também por Santo Agostinho quando proclama: Não queiras ir para fora; volta a ti; no interior do homem habita a verdade: a necessidade da busca (De vera religione, 39,72).

Quem compreendeu com precisão e assumiu com profunda paixão, júbilo, alegria e entusiasmo esse caminho foi São Francisco e sua primeira geração de frades, como o descrevem com beleza ímpar as Fontes Franciscanas (FF), mormente seus Escritos e os não menos famosos “Atos (fioretti) do Bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros”. Uma boa e precisa explicação do caminho franciscano de desvelamento do humano aparece nessa passagem das FF da edição do MSA, pág. 9.

Desde os primeiros desafios e confrontos de conversão, passando pelo Encontro com o leproso, com o Crucificado de São Damião e com o Evangelho do Envio dos Apóstolos, ouvido na Porciúncula, Francisco, depois Clara e toda aquela plêiade de seguidores de Cristo, não são mais os mesmos. Surgem novos homens, novas mulheres e inicia-se um novo tempo. Por isso, o século treze é considerado o primeiro século franciscano. Trata-se de uma forma de Vida, isto é, de uma maneira de ver e viver centrada na pobreza, na simplicidade, na paz e no bem evangélicos. O entusiasmo por esse ideal foi de tal abrangência e profundidade que veio a se constituir em verdadeira cruzada de retorno, de volta para a vida evangélica ou paradisíaca cujas sementes já estão presentes em todo ser humano. É que o Evangelho só chega ao homem por já brotar de dentro do humano. Nisso está todo o desafio da nossa Revelação.

Uma avalanche, então, se precipita história abaixo, provocando transformações radicais nos parâmetros de encontro e desencontro dos homens consigo mesmos, com Deus e com os outros das gerações futuras. Pelo espírito evangélico vivido por São Francisco, o mundo já não é mais o mesmo de antes. Desde então, instaura-se na história um rito de passagem para uma outra coisa, a coisa que a Fé, a Esperança e o Amor de Deus desencadearam na humanidade de todos os homens. Como é próprio de todo rito de passagem essencial, isto é, de passagem no modo de ser e realizar-se dos homens, o ideal franciscano vestiu-se de falas e se encarnou numa variedade de linguagens. Todas são percursos de uma vitalidade evangélica que enchem de vigor todas as formas da vida humana de homens e mulheres, jovens e adultos, letrados e sem letras, nobres e plebeus, seculares, religiosos e eclesiásticos. Por isso, os registros são os mais diversos. Temos escritos, mas temos também espírito, temos estórias, mas temos também cantos e hinos, temos lendas e narrativas, mas temos também comportamentos e sacrifícios. Temos hereges e heresias, mas dentre eles, temos também santos e mártires. Temos espirituais e joaquimitas, mas destes temos também mártires e pensadores. Acima do real com suas limitações, está sempre a realidade com suas possibilidades de ser e realizar-se. Todos estão imbuídos do mesmo fervor, do espírito da fraternidade e humanidade que vêm do novo encontro com o Evangelho, na alegria de difundir a paz, o bem e o dom de Deus recebidos de graça pela Graça.

Os atos da vida dessas primeiras gerações não são fatos apenas; são feitos, verdadeiras taumaturgias, isto é, feitos realizados no poder e pelo poder de criação do Espírito de Cristo pobre, crucificado. Por isso, também, não têm e nem carecem de data ou lugar. São de todos os tempos, pertencem a todos os lugares. Estão além e/ou aquém de qualquer verificação documental ou prova historiográfica. São monumentos vivos de uma verdade originária que não necessitam ir à fonte, uma vez que já são fonte por provirem da fonte de toda vida e se moverem no entusiasmo de uma epifania venturosa, da epifania do Amor de Deus. É a coroa de justiça de que fala o Apóstolo, dada pelo Senhor naquele dia a todos que lhe amarem a manifestação na história (FF MSA, 9).

Tanto em Cristo como em Francisco, o ser plenamente filho de Deus só vem aparecer no fim de suas vidas, e, ambos, pela consumação do caminho do humano. Como já vimos, João testemunha com muita clareza o auge desse caminho percorrido pelo filho do Homem ao registrar sua últimas palavras na Cruz: Tudo está consumado (Jo 19,30). Só nesse momento dá-se a plenitude da glorificação do humano: Eu te glorifiquei na terra. Terminei a obra que me deste para fazer. E agora, Pai, glorifica-me junto de ti com a glória que tive contigo antes que o mundo fosse criado (Jo17,4).

Também em relação a Francisco a consumação desse caminho é descrita como brilho, clarificação. Segundo uma das testemunhas, Francisco, em sua morte, se parecia como uma estrela do tamanho de uma lua, brilhando com toda a claridade do sol. E por causa disso, houve um grande ajuntamento de muitos povos, louvando e glorificando o nome do Senhor. Toda a Assis veio em peso, e a região inteira apressou-se para ver as grandezas de Deus que o senhor tinha demonstrado em seu servo. Lamentavam-se os filhos, privados de tão grande pai, e demonstravam com lágrimas e suspiros o piedoso afeto do coração. Mas, a novidade do milagre transformou o pranto em júbilo e o luto em exultação. Pois, viam o corpo do bem-aventurado pai ornado com os estigmas (2C 217).

A consumação do itinerário humano em Francisco, porém, vem ainda mais admiravelmente revelada a um outro frade de vida louvável, suspenso em oração, naquela noite e naquela hora. Apareceu-lhe o glorioso pai, vestido com uma dalmática purpúrea, acompanhado por uma multidão de pessoas. Muitos, que saíam dessa multidão, disseram ao frade: "Irmão, esse aí não é Cristo?" Ele respondia: "É ele mesmo". Mas outros também perguntavam: "Mas, não é São Francisco?" E o frade, do mesmo modo respondia que era ele mesmo. E, de fato, tanto para o frade como para todos aqueles que o acompanhavam, parecia que Cristo e São Francisco eram uma só pessoa. Os que sabem entender bem não vão achar temerária essa afirmação, porque aquele que adere a Deus faz-se um só espírito com ele, e o próprio Deus será tudo em todos no futuro (2C 219).

Enfim, Jesus Cristo, Jesus de Nazaré, o filho de uma mulher, que recusou o caminho das falsas glórias do mundo proposto pelo tentador no deserto para seguir apaixonadamente o caminho estreito e apertado da cruz da finitude, da fraqueza e da fragilidade humana, tendo de crescer cada dia em sabedoria, graça e santidade diante de Deus e dos homens (Cf. Lc 2,52), é não apenas o exegeta de Deus (VD 90), mas também o verdadeiro e único exegeta do próprio homem. E dentre os homens, depois da Virgem Maria, quem mais de perto fez dessa Paixão de Cristo sua paixão, seu caminho e o sentido pleno de nossa vida foi seu servo Francisco de Assis, o mais humano de todos os santos e o mais santo de todos os homens, eleito como um dos dez homens mais significativos do último milênio, o homem universal, de trânsito livre e bem aceito por todos, ateus ou religiosos, pobres ou ricos, católicos ou luteranos, espíritas, budistas, sábios ou gente simples. Um verdadeiro mestre do caminho humano inaugurado por Cristo.

Em louvor de Cristo, o verdadeiro e novo Adão. Amém!

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