[Frei Dorvalino Fassini, OFM]
Creio que todos nós franciscanos sempre que nos deparamos com as exigências do nosso genro de vida somos invadidos por uma porção de sentimentos, indagações e perplexidades que poderiam ser resumidos assim: para que essa montoeira de normas, regulamentos que ninguém lê e muito menos pratica? E isso nem sempre ou apenas por má vontade, mas também por nossas limitações e finitudes. Ou seja, pra que tudo isso, todos esses Estatutos, mais as CCGG, a Regra, mais a “Ratio Formationis”, a “Ratio Studiorum”, projetos disso e projetos daquilo, e tantos e tantos outros documentos da Ordem e da Igreja em geral, referentes à nossa Vida Consagrada e franciscana, recheados de exigências (centenas e centenas de artigos) tão elevadas que precisaríamos de mil vidas e vidas de heróis e santos para executá-las? Vem, então, a pergunta: Como portar-nos diante de exigências ou propostas tão numerosas e irrealizáveis, para não dizer, impossíveis?
Pois, não é assim que, nesses casos, muitas vezes, nos vem a tentação de pensar ou dizer: “Bem, já que nos pedem coisas impossíveis, pra que esforçar-me?” E assim, corre-se o risco de entrar numa atitude de contentar-se com o mínimo necessário e apenas para ficar com a consciência tranqüila ou, quem sabe, para que o provincial, o guardião, a fraternidade não possam “pegar no pé” da gente. Ou, quem sabe, nem mesmo tal pressão já não existe mais. E assim, vou seguindo minha vida sem mesmo dar a mínima a todas essas exigências. Sim, pois o que adianta estatuir, ler e ouvir tão belas e por vezes comoventes exortações como esta “amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos maltratam”, se nem mesmo somos capazes de olhar com atenção e respeito o confrade antipático e diferente que está ao nosso lado? Ou esse artigo dos novos EEGG: Para poder publicar livros que tratem questões de religião ou de costumes, os frades necessitam da licença do Ministro provincial que a concedam depois de ter obtido o parecer favorável dos censores (Cf. Can. 832). Tal licença é necessária também para cada tradução (Cf. Can. 829, CG 109, &2). Fico me perguntando: quem de nós já observou esse artigo. Eu, em todo o caso, jamais. Nem sequer sabia de sua existência. E nem mesmo censores a província tem, pelo que eu saiba.
Estava matutando todas essas questões quando lembrei-me de uma passagem de Frei Hermógenes Harada acerca dessa questão em seu livro “De estudo, anotações obsoletas”. Embora a mencionada passagem se refira à formação intelectual a questão é a mesma, ou seja: a perplexidade das exigências impossíveis expostas nos documentos oficiais da Igreja e da Ordem (Frei Hermógenes Harada, De estudo, anotações obsoltas, IFAN-Vozes, 2009. p. 30).
Segundo frei Hermógenes, a perplexidade e a tensão, nesses casos, nascem porque nossa leitura ou busca não está em sintonia com o móvel ou a razão dessas exigências. É como se quiséssemos ouvir uma rádio AM na freqüência FM. É impossível. Ou seja, nós perguntamos pela realizabilidade, e eles (os documentos) estão falando da validade, isto é, do valor. Portanto, em vez de perguntar se essas exigências são realizáveis deveríamos perguntar se são válidas, úteis, importantes, verdadeiras, necessárias, coerentes.
Nós as olhamos a partir da dinâmica ou lógica da facticidade (dos fatos), das ocorrências, do nosso mundo e de nossas competências, forças ou capacidades e elas da grandeza da Vida religiosa. Ou seja, a Vida religiosa não trata do que nós conseguimos ou fazemos, mas do que Deus faz e consegue realizar em nós. O conteúdo, a substância da Vida religiosa, expressa nesses documentos, não é nossa possibilidade ou poder, mas o empenho de abertura para uma realidade que nos transcende e opera maravilhas. Pois, como dizia o Senhor aos discípulos, espantados diante da impossibilidade do camelo passar pelo fundo de uma agulha, isto é, de um rico entrar no Reino dos céus (encontro com o seu Senhor, participar do banquete de seu amor): Aos homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível (Mt 19, 26).
Em nosso caso, isto é, no mundo dos fatos e das ocorrências e de nossas competências o que é impossível é impossível. Por isso, nesse caso, pedir ou exigir o impossível é ridículo, um absurdo, uma loucura. Mas, para quem está na dinâmica do “além”, do transcendente, que costumamos chamar, simplesmente, de “dinâmica do chamado, da vocação” (que não é a dinâmica dos fatos e das ocorrências, muito menos das nossas competências) todas essas propostas ou exigências contidas e expostas no Evangelho, na Regra, nas CCGG, Estatutos, etc. etc. são apelos, exortações, desafios para dispor-nos cada vez mais e melhor para a abertura do Encontro, da fé, da entrega ou, como costumamos dizer, do amor.
Na Vida religiosa, isto é, na Vida do enamoramento, do amor, da fé, é desonesto ficar pensando e se (pre)ocupando com suas possibilidades, realizações e conquistas, pois ela - a Vida religiosa - não é algo da nossa competência, mas doação de Alguém que nos ama por primeiro, como diz São João. Ou seja, atrás e no coração de todos os capítulos de nossa Regra e das centenas e centenas de artigos de nossas CCGG, Estatutos Gerais e provinciais, de toda a Ratio Formationis e Ratio Studiorum, etc. etc., está soando, repercutindo, como diz Santa Clara, o ardente desejo do pobre Jesus Cristo crucificado (1CCL 13).
Ou seja, Deus está fazendo o possível e o impossível, não para merecer-se ou conquistar algo, mas para sentir a alegria de poder estar e ser alguém conosco através de sua encarnação; alguém que deseja provar a alegria e a gratidão de poder dar todo o seu amor e de ser recebido pelo menos um pouquinho por nós e de poder, assim, sentir um pouco do nosso amor. Aqui, portanto, em vez de reclamar ou dizer “O que adianta?”, deveríamos olhar, admirar e exclamar: “Sim, aqui têm exigências muito elevadas, impossíveis, porque a Vida que me está sendo oferecida é grande, bela, nobre, divina, por demais elevada para minha pequenez e fragilidade. Sim, tudo o que está sendo pedido aí não consigo observar porque é coisa de Deus”.
Mesmo assim, ou justamente por causa disso, isto é, por causa de minha impossibilidade, o Senhor não desiste de mim. Continua crendo, confiando no meu bem-querer e esperando minha disposição de recebê-lo e de também eu entrar na dinâmica dessa lógica, desse princípio originário do amor: fazer tudo, também eu, de minha parte, para agradecer e doar-me, de graça e inteiramente, a quem tanto me ama e me quer. É a dinâmica do primeiro mandamento: Amar a Deus de todo o coração de toda a alma... Deus, Vida religiosa (por serem só e puro AMOR) estão fora de nosso alcance ou possibilidades. Eles nos são impossíveis, não se compram, não se adquirem, mas, podemos e devemos dispor-nos para bem recebê-los. Pois, como dizia o Beato Egídio: Há alguém (Deus) doido para dar-se, mas não há quem queira receber.
Todas essas exigências impossíveis, portanto, têm um único objetivo: convocar-nos para a dinâmica do encontro, do amor, como bem dizia santa Clara: Entre outros benefícios que temos recebido e estamos recebendo diariamente de nosso doador, Pai das misericórdias, pelos quais devemos dar mais ações de graças ao mesmo glorioso Pai está a nossa vocação que, quanto mais perfeita e maior, mas a Ele a devemos. Por isso, reconhece tua vocação (TCL 1-3).
E, quem sabe, então, se, doando-me todo, não alcance, um dia, pelo menos um pouquinho de realização de uma ou de outra dessas exigências tão elevadas e impossíveis!? E se não conseguir nem mesmo esse pouquinho, vou pelo menos desejá-las de todo o coração e tentar consegui-las com todas as minhas forças e com toda a minha boa vontade. Pois, como ensinava, ainda, o bem-aventurado frei Egídio, companheiro de Francisco: mais vale desejar entrar na Ordem, mesmo estando fora, do que estar dentro e não desejá-lo (Cf. DE 19,18).
Portanto, ainda, segundo frei Hermógenes, a primeira e mais fundamental questão, diante dessas exigências impossíveis, é que jamais deixemos de questionar esse nosso modo capcioso de perguntar. E ele mesmo responde em que consiste esse modo: Consiste exatamente nisso: que este tipo de perguntas contrabandeia, para dentro da dimensão das exigências transcendentes, uma lógica que não é dela, i. é, a lógica da realidade empírico-ocorrencial dos fatos. Aqui, nesta última, o que é um fato impossível é um fato impossível. E, por isso, é contraditório, isto é, absurdo querer que o fato impossível seja um fato possível. Mas, na dimensão das exigências transcendentes, onde não se trata de equacionar fatos empíricos ocorrenciais, mas sim de apelos e desafios de confrontos de liberdades, de embates, diálogos, empenhos e desempenhos de busca no encontro de amor, como é, no caso, do ser religioso e sacerdote de Jesus Cristo no seu seguimento, mesmo as coisas mais banais do mundo devem-se tornar impossíveis, isto é, dom de uma busca cuja gratuidade não é mais minha possibilidade, por ser exatamente uma doação de amor, diante da qual a única resposta lógica e adequada a esse modo de ser é igualmente uma doação e um engajamento total, que faz o possível e o impossível, não para merecer ou conquistar a graça, mas para agradecer também gratuitamente à graça, dando tudo de si de graça (Harada Hermógenes, De estudo, anotações obsoletas, IFAN-Vozes, 2009, p.35-36).
Do exposto, primeiramente, deveria nascer em cada um de nós um coração humilde, agradecido e exultante de alegria como o de Maria que a levou a proclamar: A minha alma engrandece o Senhor porque fez em mim maravilhas... e porque olhou para a humildade de sua serva... doravante as gerações hão de chamar-me de bendita... derruba os poderosos de seu trono e eleva os humildes ...
Em segundo lugar deveríamos ver que as exigências impossíveis dos nossos mencionados documentos estão falando da Vida religiosa-franciscana e não da vida de um cooperativado ou sindicalista, etc. Ora a Vida franciscana se rege pelo vigor do chamado ou vocação sumamente exigente de um Povo, de uma Família que, no mundo de hoje, ainda conserva em si a grande experiência da dinâmica e força do espírito, cuja exigência, embora muito comprometedora e trabalhosa, pode nos levar cada vez mais a uma maior responsabilização para com a humanidade (idem, 41).
Portanto, a perplexidade e a tensão não vêm do fato de não podermos realizar o que de nós é esperado. Vem, antes, da compreensão de Vida Religiosa que está exposta e proposta nesses documentos, isto é, da seriedade com que eles consideram a busca do seguimento de Cristo, pobre e crucificado. Um seguimento ou caminho de realização da plenitude do nosso humano, da plenitude de nossa felicidade.
Em que consiste buscar Cristo crucificado como plenitude da realização humana, tão bem compreendida por Francisco e toda aquela primeira geração de frades, porém, é assunto para outra ocasião.
Em louvor de Cristo, Amém!
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