segunda-feira, 20 de setembro de 2010

De Penitentes para Frades Menores, por quê?

por Frei Dorvalino Fassini, OFM

Há na história de nossa Ordem uma questão pouco estudada, mas não de somenos importância: por que não vingou o primeiro nome que Francisco e os primeiros frades se deram? Segundo Celano, e demais hagiógrafos do Santo, nos primórdios da Ordem, à pergunta acerca de sua identidade respondiam que eram homens penitentes da cidade de Assis1, ou simplesmente: os penitentes de Assis. E não apenas se chamavam de penitentes, mas e também, segundo o próprio Francisco, em seu Testamento, fazer, ou levar, uma vida de penitência era sua vocação e missão, o sentido de sua vida, recebido do Senhor2. E isso para ele e para todos os seus seguidores.

Mas, porque, então, logo depois, começaram a se chamar “Frades Menores”, denominação que perdura até hoje?


Uma das explicações muito apreciada e divulgada, principalmente entre nós da América Latina, nos últimos anos, estaria na efervescente transformação da sociedade assisiense e italiana no tempo de São Francisco. O tradicional feudalismo em franca e rápida decadência, estava criando um espaço cada vez maior para uma nova sociedade marcada, a grosso modo, por duas classes, onde começava a imperar o espírito e a estrutura capitalista. De um lado a classe dominante, constituída por uma pequena minoria, composta de comerciantes, proprietários de terras e profissionais liberais, detinha o controle e o domínio das “coisas públicas”. Eram os então chamados “maggiori”, isto é, os “maiores” ou “maiorais”. Do outro lado, crescia cada vez mais a presença da classe majoritária, dependente ou dominada, composta de servos, tarefeiros, biscateiros, assalariados, trabalhadores braçais, etc. Eram os então chamados “minori”, isto é, os “menores” ou “pequenos”, os “sem voz e sem vez”, como se diria hoje, que viviam, praticamente, à margem dos acontecimentos e decisões da sociedade3.


Ora, Francisco, filho de um dos mais expressivos comerciantes de Assis, conhecia muito bem essa situação. Mas, por natureza, dotado de uma índole muito sensível e cavalheiresca, o encontro com essa situação deixava-o muito condoído e compassivo. Isso o teria levado à decisão e à opção de colocar-se do lado dos pobres e marginalizados: os “minori”. Essa teria sido, inclusive e também, a grande causa de sua conversão e de toda a sua vida: a compaixão para com os pobres. Dentro dessa ótica, e com razão, portanto, costuma-se dizer que teria sido ele o precursor da atual opção preferencial pelos pobres. Antecessor, até mesmo, de Puebla e Medelin e da Teologia da Libertação.


Essa visão trouxe e traz consequências muito concretas, entre nós, como, por exemplo, ir morar entre pobres, levar os formandos para a periferia, participar das lutas e reivindicações dos pequenos, humildes e marginalizados. Chegou(a)-se até a estabelecer como princípio formador: “nossos formadores são os pobres”. Aí estaria, portanto, a causa ou a razão da troca do nome de penitentes para menores: “Irmãos (frades) menores”.


Mas, não é assim que testemunham seus hagiógrafos, como, por exemplo, Tomás de Celano. Depois de assinalar que foi o próprio Francisco quem fundou a Ordem e que foi também ele quem lhe deu o nome faz questão de assinalar a causa. Diz ele que esta apareceu no tempo da elaboração da Regra, isto é, entre 1210 e 1221, quando estavam escrevendo a exortação de Cristo aos Apóstolos acerca da minoridade, isto é, que todo aquele que quiser tornar-se maior entre eles seja Ministro e servo deles. E quem entre eles é o maior faça-se como o menor4. Francisco, então, exclamou: Quero que esta Fraternidade seja chamada Ordem dos Frades Menores5.


Cai, totalmente por terra, portanto, a tese, acima mencionada, de que Francisco teria escolhido esse termo (menor) por causa da situação sócio-político-enconômico-religiosa da época. O que moveu Francisco a fazer essa troca, portanto, está não o encontro com os pobres, mas o encontro com Jesus Cristo e sua proposta de Vida ordenada aos Apóstolos: que, em vez de bancarem ou se fazerem de mestres, senhores e maiores, se fizessem discípulos, servos e menores porque um só é nosso Pai e Mestre e todos nós somos irmãos6. Enfim, a causa última e verdadeira, a origem, o gênesis dessa troca está a comoção que tomou conta de Francisco no encontro com Aquele que sendo rico se fez pobre por amor a nós, a fim de enriquecer-nos com sua pobreza7. Há nisso, portanto, uma diferença radical, isto é, de raiz ou de gênesis, entre as duas explicações. Na primeira, o que move ou gera os “minori” ou pobres a serem pobres é a desventura da vida e ou, muitas vezes e principalmente, a força e a opressão de uma sociedade injusta. Por si mesmos não seriam pobres. Por isso, lutam para, também eles, um dia, se tornarem maiores, livres de sua menoridade.


Por isso, estão, estarão e deverão estar sempre na luta de e por seus direitos. É dever da justiça humana, isto é, de todos os homens e, mesmo, uma questão de sua honra, dignidade e liberdade sair desse estado. Por isso, trabalham, lutam, guerreiam, brigam e por vezes morrem e matam para se libertar desta sua condição humilhante e marginalizada. Com Cristo, com os Apóstolos, e agora com Francisco, a causa, o que move sua busca de pobreza e de minoridade, seu amor pelos pobres é bem outra coisa: o amor, a paixão, o enamoramento nascido do encontro com este gênero de vida que vem do próprio Deus e nos é revelado e testemunhado por Jesus Cristo. Deus, que, embora sendo o onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus, todo o bem, o sumo bem, o bem inteiro, o único bem8, vive e se faz sempre e a toda a hora o menor de tudo e de todos porque isso é sua identidade mais profunda, seu ser e seu caminho, seu bem-querer ou, como diz São João, porque Deus charitas est. Ora, não há como provar o amor para o outro e, reciprocamente, receber dele seu amor, fora desse movimento: ser menor, pobre. Quem quiser amar na dinâmica da grandeza, da sabedoria, do seu próprio querer, do seu próprio fazer e poder sempre dará com os burros n`água. O “eu sei”, “eu posso”, “eu quero”, “eu faço”, “eu opto” é o inimigo número um de toda intimidade, amor e doação. É a sabedoria do mundo versus a Sabedoria de Deus revelada por Cristo crucificado: o Maior que se faz o menor de todos os menores. Aqui não há nem mesmo o poder de fazer uma opção. Por isso, em vez de opção há apenas a humilde acolhida e grata resposta a quem nos ama por primeiro. Por isso, Nossa Senhora não responde ao Anjo com um “eu faço”, ou “eu vou fazer”, mas, tão só e simplesmente com um “Fiat”, isto é: “Faça-se”, ou seja: “Ele, o Senhor, pode fazer em mim o que Ele quiser”.

Portanto, na origem, tanto da conversão e da experiência evangélica de Francisco, como dos seus Escritos, está um lento processo de amadurecimento, com longos e demorados tempos de recolhimento interior, recheados de não menos intensos exercícios de reflexão e meditação das candentes questões que dizem respeito ao sentido da vida humana; está, enfim, a questão de todas as questões: o porquê da Paixão de um Deus que crucifica seu Filho amado, do Maior que se faz o menor de todos os menores, do rico que se faz o mais pobre de todos os pobres? Quem quiser compreender Francisco e seus Escritos - a Vida franciscana, enfim - deve partir daqui, isto é, da degustação contínua e prolongada do encontro com a Paixão do Crucificado e com o Evangelho do Envio dos Apóstolos.

Aliás, segundo Burcardo de Ursperg, monge premonstratense, entre “penitentes de Assis” e “Frades Menores” houve outro nome: o de “Pobres Menores”. Todavia, como certos grupos de penitentes hereges, principalmente os Humilhados e os Pobres de Lião, usavam o nome de “pobres” apenas para contestar, criticar e condenar a Igreja em geral e o clero em especial, vangloriando-se de serem “pobres”, Francisco trocou “pobres” por “menores”. Ouçamos o que ele diz:

1Naquele tempo, disse Burcardo, o mundo já mergulhava em precoce velhice. Foi então que, na Igreja, surgiram duas novas Ordens religiosas que lhe renovaram a juventude como a de uma águia. Essas Ordens também foram confirmadas pela Sé apostólica. 2São a dos Frades Menores e a dos Pregadores. Elas foram aprovadas dentro das seguintes circunstâncias.

3Já há mais tempo, haviam surgido na Itália duas seitas que perduram até hoje. Uma dessas se autodenominava Humilhados e a outra, Pobres de Lião. 4O Papa Lúcio, a seu tempo, as inscreveu entre os heréticos porque circulavam entre eles crenças e costumes supersticiosos. Além disso, em pregações clandestinas, promovidas freqüentemente em lugares ocultos, rebaixavam a obediência à Igreja de Deus e ao sacerdócio.


5No mesmo tempo, vimos alguns do grupo que se diziam Pobres de Lião, junto à Sé apostólica. Estavam com certo Bernardo, seu mestre, penso. 6Pediam à Sé apostólica confirmação de sua seita e que a munisse de Privilégios. 7Diziam que, sem dúvida, levavam a vida dos Apóstolos, pois, nada queriam possuir, nem mesmo um lugar certo para morar. No entanto, zanzavam por vilas e castelos.


8O Papa, porém, censurou-lhes certas esquisitices na maneira de viver, a saber, desfiavam o calçado por cima dos pés e perambulavam como se estivessem de pés descalços. 9Além disso, usavam capuzes como os religiosos, mas só cortavam os cabelos da cabeça à moda dos leigos. 10Mais reprovável ainda, porém, era o fato de perambularem promiscuamente, homens e mulheres, morando juntos, quase sempre na mesma casa, e, segundo alguns, de vez em quando até dormiam na mesma cama. Eles, porém, afirmavam que tais modos de vida vinham dos Apóstolos.

11No lugar daqueles, porém, o Papa quis confirmar alguns outros que se chamavam Pobres Menores. Estes rejeitavam as mencionadas esquisitices e costumes réprobos. 12Andavam de pés totalmente descalços, no verão e no inverno. 13Não aceitavam dinheiro nem qualquer outra coisa exceto o alimento e as vestes necessárias, se por acaso alguém espontaneamente lhos oferecessem, pois, não pediam nada a ninguém. 14Estes, contudo, mais tarde, refletindo que um nome muitíssimo humilde podia introduzir a vanglória e que muitos mantinham o nome de pobres enganosamente, só para se vangloriarem diante de Deus, preferiram chamar-se Frades Menores em vez de Pobres Menores. São obedientes em tudo à Sé apostólica9.


Também Jacques de Vitry, escrevendo em 1216, de Gênova, dá o mesmo testemunho: Encontrei, porém, naquelas regiões, apenas uma consolação: muitas pessoas de ambos os sexos, ricos e leigos, largando todas as coisas por causa de Cristo, fugiam do mundo. Chamavam-se “irmãos menores” e “irmãs menores”10.


Mas, com a troca do nome teria, então, Francisco e toda aquela primeira geração de frades e irmãs, renunciado à penitência evangélica?


Em verdade, a troca do nome em nada diminui ou obscurece a inspiração originária da nova vida de São Francisco e de todos os seus seguidores, isto é: Francisco e todos os franciscanos continuam levando uma vida de penitência evangélica. Esta continuou e continua sendo o eixo, o coração, o móvel de toda esta nova forma de vida. O que muda é apenas sua caracterização, ou seja, o modo de ser penitente. Assim, os Frades (Irmãos) da Primeira Ordem (menores, capuchinhos e conventuais) caracterizam “sua” Vida de penitentes evangélicos (Vida apostólica) pela pobreza e pela minoridade. As Irmãs Clarissas, segunda Ordem, acrescentam a essas duas características, a Vida contemplativa enclausurada, de tempo integral. Já os Irmãos e Irmãs da Terceira Ordem Regular e da Ordem Franciscana Secular explicitam a Vida penitencial ou Apostólica pela assim chamada “caridade ativa”, isto é: amando o Senhor de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente e com todas as forças, o próximo e a si mesmo11.


Viver como menor e pobre é a maneira mais expressiva de estar na busca e na concretização da penitência evangélica, que não é outra coisa senão a busca e a concretização da Vida apostólica que, por sua vez, resume e concretiza a busca da Paixão de Jesus Cristo crucificado. E, enfim, a Paixão de Jesus Cristo crucificado não é outra coisa senão o resumo e a expressão, mais pura, profunda e rica do ordenamento (Ordem), da regra (Regra) e da vida (Vida) das Três Pessoas da santíssima Trindade: Ordem, Vida e Regra do Pai e do Filho e do Espírito Santo, fonte primeira ou última de toda a Boa Nova, de toda a Penitência evangélica.


Assim, a troca do nome, de penitentes ou pobres para “menores” não significa afastamento ou desconsideração de Francisco e dos frades para com os desfavorecidos e marginalizados pela vida e pela sociedade, uma desconsideração de suas lutas e reivindicações. Dá-se justamente o contrário. Cria-se e se estabelece entre eles um fraternismo bem mais sólido e profundo porque nascido da solidez de uma Paixão divina e eterna: Jesus Cristo crucificado, que se faz pobre e menor por Paixão, amor puro e simples, jamais por opção, obrigação ou qualquer outra conveniência.


Como confirmação e conclusão de tudo isso, ouçamos o que diz o próprio seráfico Pai, como ele, enfim, entende ser ou levar uma vida de pobre, menor e penitente, segundo o Evangelho:

1Todos os Irmãos empenhem-se em seguir a humildade e a pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo e recordem-se de que nada mais nos importa ter do mundo inteiro, a não ser, como diz o Apóstolo: tendo alimentos e com que nos vestir, estejamos contentes com isto. 2E devem alegrar-se quando estiverem entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos de rua. 3E quando necessário recorram às esmolas. 4E não se envergonhem, mas, antes recordem que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo Onipotente, enrijeceu a face como pedra duríssima e não se envergonhou.


5E foi pobre e hóspede e viveu de esmolas, Ele próprio e a Bem-aventurada Virgem e seus discípulos. 6E quando os homens os fizerem passar vergonha e não lhes quiserem dar esmola, retribuam, por isso, graças a Deus; porque dessa vergonha receberão grande honra ante o tribunal de Nosso Senhor Jesus Cristo. 7E saibam que a vergonha não é imputada aos que a padecem, mas aos que a infligem12

1 LTC 37,7

2 T 1

3 Segundo Donald Spoto, em Francisco de Assis, O Santo Relutante,Objetiva, 2003, p.27, a nova sociedade assisiense e italiana se constituía em três grupos: os maiores (os de condição superior, essencialmente os nobres), os mediani (de importância média) e os minori (de categoria inferior). Mas, na prática, os mediani não existiam porque ou faziam parte dos maiores (uma pequena minoria) ou dos minori (a grande maioria).

4 RNB 5,11-12

5 1C 38,3

6 Cf. Mt 23,1-12

7 2Cor 8,9

8 LH 11

9 Fontes Franciscanas, p. 1294.

10 Fonti Francescane, edição italiana, p.1460). É difícil saber se por “irmãs menores” Vitry esteja se referindo às Clarissas ou a senhoras, seguidoras de Francisco, membros da Ordem Terceira.

11 Cf. Prólogo da Regra da OFS e da TOR

12 RNB 9,1-7

Ilustração: Roma, santa Dorotea: emblema francescano nella chiesa / foto de Lalupa. 2009. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Trastevere_s_Dorotea_-_frati_minori_conventuali_1120641.JPG acesso em 20 set. 2010.

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