por Helber Clayton*
Muitos já ensinaram sobre a Lectio Divina, sua origem, seus passos, seus objetivos. Sobre o tema é fácil de encontrar na Internet, seja em português, seja em qualquer língua. Leia especialmente "Scala Claustralium (A Escada dos Monges)".
Mesmo assim, muitos ainda pedem explicações sobre essa antiquíssima prática. Tentarei então, em pausas, descrever aqui minha própria experiência na prática da Lectio.
Muitos traduzem "Lectio Divina" como "lição" ou "leitura de Deus", "leitura orante da Palavra". Eu a chamo de "leitura sob a inspiração do Espírito", uma vez que a Escritura é a própria voz do Espírito de Deus, e é do Espírito que deve brotar a nossa oração quotidiana (Cf. Rm 8, 26).
Devo chamar a atenção, como estudioso das Letras, que entendo a "leitura" não apenas como uma intelecção de textos escritos, mas como um processo, que começa na decifração dos códigos linguísticos, sejam eles escritos ou não, verbais ou não verbais, e termina na produção de outro texto que flui da mente e do coração através das nossas faculdades, seja da voz, da escrita ou qualquer outra forma de expressão.
A Lectio Divina é um processo. Como diria o monge Guigo, uma escada. Que leva, em quatro passos, da terra ao céu.
Fontes da Lectio Divina
Partimos da premissa monástica de que a oração nasce da leitura assídua e diligente das Escrituras (Orígenes). A Palavra de Deus é a fonte por excelência da Lectio Divina. Dessa forma, a Liturgia das Horas, por ser composta basicamente de textos extraídos da Sagrada Escritura, além de conter, entre outros elementos, hinos, antífonas e escritos, lapidados na tradição viva da Igreja, é opção privilegiada para o exercício da Lectio Divina.
Nesse processo comunicativo, nos colocamos, primeiramente como receptores, o Espírito Santo como emissor da mensagem, e o principal meio para nos transmiti-la é a Escritura Sagrada.
Mas a voz de Deus ressoa em toda parte:
e o firmamento, a obra de suas mãos;
o dia ao dia transmite esta mensagem,
a noite à noite publica esta notícia.
Não são discursos nem frases ou palavras,
nem são vozes que possam ser ouvidas;
seu som ressoa e se espalha em toda a terra,
chega aos confins do universo a sua voz." (Sl 18, 2-5)
Para isso é necessário, antes de tudo, silêncio. Não apenas de ausência de palavras, mas de atenção e abandono, de renúncia de expectativas e (pré)conceitos, pois o Senhor irá falar. É a paz que ele vem anunciar (Sl 84, 9).
Lectio
Podemos dizer que a Lectio Divina começa, antes, com o esforço de Deus para comunicar-se conosco. É ele quem nos atrai, quem faz o nosso coração arder como aquela sarça no monte Horeb, faz com que nos aproximemos, e, do meio da sarça, nos chama pelo nome: "Moisés, Moisés!" (Cf. Ex 3, 1-6). E nosso primeiro movimento é dizer: "Eis-me aqui! (Ex 3, 4). Quando, enfim, escutamos a voz de Deus, aí começa para nós a Lectio Divina.
À leitura, eu escuto, é que diz o monge Guigo II, explicando o primeiro degrau de sua escada. E, ao prestar atenção, trazemos o conhecimento de Deus para o nosso conhecimento. Decodificamos a mensagem divina para a linguagem humana. Acrescentamos informação do céu ao nosso entendimento terreno.
Através da Lectio, a razão busca sentidos para a mensagem, as explicações para as figuras de linguagem, a localização no espaço e no tempo, o contexto histórico, a intencionalidade discursiva. Colhemos palavras, frases, sentidos, como colhemos flores num jardim.
A "leitura", porém, é apenas o primeiro degrau, a porta de entrada para os outros passos da Lectio Divina.
Meditatio
"Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração". (Lc 2,19)
Antes que Bruno, o Cartuxo, explicasse o sentido dos degraus, a Virgem já os praticava. Antes que os exegetas tentassem dar novo sentido ao logos e rhema de Platão, a mãe de Jesus já os demonstrava. Só conservando a Palavra e meditando-a no coração é possível trazer a Lei e os Profetas do seu contexto histórico para o atual; traduzir as metáforas para a linguagem corriqueira; transportar a teologia para a prática. É assim o Magnificat (Lc 1, 46-55): um canto baseado na escuta e meditação da Sagrada Escritura.
Na maioria das vezes, no entanto, nosso contato com Deus não passa do primeiro degrau, do mero entendimento. Temos uma enorme facilidade de esquecer as passagens da Escritura. Isto porque a mente tende a deletar aquilo que não damos serventia. Mesmo que sejam textos da Palavra de Deus.
Só escutar não basta. É preciso conservar a Palavra e meditá-la no coração.
Em vista disso, alguns escritores criaram uma espécie de sub-degrau para a Meditatio: a "Ruminatio" que é o trabalho de "conservar" a palavra na mente e no coração, através do retorno ao texto e até mesmo da memorização.
"Um Cristão deve meditar regularmente para não ser como os três primeiros terrenos da parábola do semeador". (CIC 2708).
Oratio
Chegamos ao momento da oração.
Como é isso? Só no terceiro degrau oramos de fato?
Mas é o movimento natural da vida!
Quando nascemos, qual a primeira coisa que fazemos antes de soltar o choro? Resposta: inspiramos o ar. Claro! antes de nascer, o oxigênio que nos chegava era através do sangue da mãe. Ao nascer inspiramos pela primeira vez. Ao inspirar, o ar chega aos pulmões, e, através dos pulmões, leva oxigênio a todos os órgãos do corpo.
E então, descobrimos a necessidade de algo que ainda não compreendemos. Por não compreender, choramos. É a única coisa que sabemos fazer. Descobrimos depois que aquela necessidade que nos levou ao choro era de conforto, carinho, alimento...
A Lectio Divina é como esse processo do nascimento.
A leitura é a inspiração. A meditação é quando o oxigênio é espalhado pelo corpo. A oração é o choro.
No Ofício das Leituras de sexta-feira após as cinzas lemos que:
"como uma criança que, chorando, chama sua mãe, a alma deseja o leite divino, exprime seus próprios desejos pela oração e recebe dons superiores a tudo que é natural e visível." (Pseudo-Crisóstomo).
Porque não sabemos orar como convém, emitimos, após inspirar, gemidos inefáveis (Rm 8,26).
Esse gemidos são a expressão do coração que ouviu e mergulhou no mistério. E não importa o tipo, a forma ou a fórmula da expressão. O que importa agora é dizer a Deus...
Contemplatio
"Como uma criança que a mãe consola, sereis consolados
em Jerusalém." (Is 66, 13)
Desde sempre entendi a"contemplatio" como "consolatio". Aqueles que choram pela oração são consolados na contemplação. Bem-aventurados estes (cf Mt 5,4).
A contemplação é a resposta à nossa oração. É a manifestação sensível da presença de Deus por meio do seu Espírito, que entra no cenário da nossa vida através da porta aberta pela oração. É obra daquele Paráclito prometido por Jesus, que haveria de ensinar toda a verdade (cf. Jo 16, 13), não da maneira racional, mas do suave consolo da fé.
Não devemos atribuir à palavra "contemplação" apenas o seu sentido mais usual que é de "olhar com atenção", mas o seu segundo sentido: "dar a; doar a; fazer mercê a". É Deus quem nos dá a sua graça, e nós somos "contemplados".
Penso que é esse o verdadeiro sentido que Guigo, o cartuxo, quis dar ao último degrau da sua escada, aquele que toca o céu, pois assim o descreve:
"E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces" (cf. Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna." (Scala Claustralium VII)
Assim, pela contemplação somos impregnados por esse orvalho do céu, de modo a buscarmos, mais vivamente, andar conforme a vontade daquele que veio em nós habitar.
"Não cesso de agradecer a Deus por vós, pela graça divina que vos foi dada em Jesus Cristo. Nele fostes ricamente CONTEMPLADOS com todos os dons, com os da palavra e os da ciência, tão solidamente foi confirmado em vós o testemunho de Cristo." (I Cor 1, 4-6)
A Lectio Divina e a Vida
Em verdade a Lectio Divina é um processo que envolve toda a nossa vida, desde o momento que aderimos à fé, até o último dia de nossa caminhada.
Foi assim para os discípulos de Jesus.
Eles, atendendo ao chamado do mestre, passaram a ouvi-lo, a saber o sentido das parábolas, a ver os seus atos, seus exemplos de vida. Fizeram uma verdadeira "leitura de Cristo".
Também, a exemplo da Mãe, conservavam tudo que tinham visto e ouvido, meditando em seus corações (cf. Lc 2, 19). Tanto que mesmo depois de muitas décadas lembravam de detalhes das palavras e das obras do Mestre e os contaram em seus Evangelhos.
Seguindo a Cristo pelos montes onde costumava orar e, inflamados pelo seu exemplo, sentiram o ardente desejo de também aprenderem a rezar, e pediram ao Senhor: "ensina-nos!" (Lc 11,1). Unânimes na oração (At 1, 14), permaneceram no Cenáculo juntamente com Maria, mãe de Jesus, até o dia de Pentecostes.
Tendo chegado o momento aguardado, subiram ao degrau da contemplação ao serem revestidos com os dons do Espírito Santo. Então compreenderam, pelo dom da fé, os sentidos da paixão e ressurreição do Senhor e a razão verdadeira do chamado: o anúncio do Evangelho a todos os povos. E, vivendo a vida de Cristo, sofrendo os mesmos ultrajes, açoites e martírios, foram dignos de serem chamados "Cristãos", desde Antioquia (At 11,26) até os dias de hoje.
Se do Senhor as palavras ouvirmos, se delas extrairmos o significado para nossa vida, se juntos com ele subirmos ao monte da oração, se sua vida tornar-se impregnada em nós a ponto de sermos "cristãos" de fato, não apenas em momentos determinados, mas em todo o tempo, então podemos dizer que somos discípulos de Jesus, e fazemos da nossa vida uma viva e verdadeira Lectio Divina.
Acesse: www.oratio.blogspot.com
*Leigo, casado, licenciado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Extraído de http://www.liturgiadashoras.org/artigos/lectiodivina.html acesso em 23 ago. 2010.
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