quarta-feira, 19 de maio de 2010

Em Nome do Senhor Começa a Vida e a Regra Franciscana

Frei Dorvalino Fassini, OFM

Ao deparar-nos com os textos da diversas versões da Regra Franciscana em todas elas encontramos como início fórmulas como Em nome do Senhor ou Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.


Com essa invocação, na abertura da Regra, Francisco, certamente, atem-se a um dos mais queridos e apreciados costumes do povo cristão, principalmente na Idade Média: começar todo e qualquer obra ou trabalho em nome do Senhor!


Diferentemente de textos ou documentos de caráter meramente humano, nos quais, geralmente, em seu início, com a gravação do nome dos autores, explicita-se com clareza e insistência sua origem ou autoria, o texto da nossa Regra começa pura e simplesmente: Em nome do Senhor.


Essa maneira de iniciar a Regra, porém, parece dizer que sua origem não está em Francisco ou Clara nem em quem quer que seja, mas sim no mistério mais significativo e originário de todas as criaturas e de toda a vida cristã: o Senhor.


À semelhança da chave musical que, já desde o início, dá o tom que vai perpassar, conduzir e orientar a melodia de toda uma partitura musical, ou, melhor ainda, semelhantemente ao prólogo do Evangelho de São João, no qual, já de saída, se anuncia o princípio originário de toda a Boa Nova, isto é, o Verbo que se faz Carne, a expressão Em nome do Senhor evocada, aqui, na abertura do texto, torna-se como que a entoação de toda a Vida e de toda a Regra franciscana, ou seja: que nossa Vida e nossa Regra – nossa formação - em todos os seus capítulos, sempre nasce, cresce, amadurece e termina em nome do Senhor.


Mas o que significa começar, crescer e concluir a Vida e a Regra franciscana Em nome do Senhor!?


Vale observar, logo de saída, que o nome está sempre ligado ao fenômeno do som e da linguagem. Pois, o nome não é outra coisa senão o som próprio produzido pela ação da força que move constitui e distingue cada criatura em sua identidade. Em verdade, originariamente, o nome não é outra coisa senão o som do ser de cada coisa, captado pelo espírito do homem? Por isso, a pronunciação de um nome é, sempre e também, de certa forma, um ato evocador e criador dos seres. Assim, no Paraíso, ao ser incumbido de dar nome às criaturas, Adão foi constituído por Deus não em mero etiquetador, mas, acima de tudo, um seu co-criador e senhor do universo.


Por isso, pronunciar o nome de alguém, antes de mero sinal ou etiqueta de identificação, é tornar presente a própria pessoa, com sua identidade misteriosa e seu vigor edênico. Ora, se esse é o poder criativo na evocação de todo e qualquer nome, o que não dizer da evocação do nome do próprio Senhor de cada criatura, Daquele que é sua raiz, sua força originária, dAquele sem o qual nem eu e nenhuma outra criatura seríamos? Assim, começar a Vida e a Regra Em nome do Senhor, como o fazem Francisco e Clara, é fazer ressoar o advento e a presença retraída do vigor do mistério de sua própria origem e da origem de todas as criaturas e de todos os eventos[1].


Em, no latim in, indica movimento para o interior, o dentro, o âmago de... Assim, iniciar a Vida franciscana em nome do Senhor indica, antes de mais nada, a disposição de sempre e em todos os momentos da vida, deixar-se “im-portar” para, instruir e orientar pelo âmago da Autoridade do retraimento do mistério do próprio Deus que tocou Francisco, Clara e todo nós vocacionados à Vida franciscana.


Assim, iniciar a leitura da Regra na dinâmica do em nome do Senhor significa dispor-se a deixar-se conduzir como servo para o dentro, para o interior da esfera e da dimensão do encontro com a origem de nossa vocação. Nessa dinâmica, ler e estudar a Regra, em nome de quem ela foi escrita, será sempre exercício de disponibilidade, humilde e graciosa, para bem ouvir e bem acolher o toque desse mistério insondável com todas as suas exigências, colocando-se, benevolamente, em condições de bem segui-lo, imitá-lo e “copiá-lo”; é fazer ecoar, sempre de novo, o vigor da afeição originária que transforma os vocacionados a esta vida, de estranhos em amigos e irmãos, de indiferentes em discípulos e seguidores do próprio Senhor, seu único e verdadeiro mestre.


A importância de se estar em nome do Senhor, tanto na leitura da Regra bem como em todo o empenho de nossa formação aparece se recordarmos o significado originário de senhor.


Hoje em certos ambientes é fora de moda e por isso tido como cafona chamar alguém de senhor ou senhora. Acabou-se o tempo em que uma das primeiras coisas que se aprendia tratar reverentemente os pais, padrinhos e parentes e mesmo estranhos com a nobreza da palavra senhor, senhora.


Na Sagrada Escritura senhor é, certamente, a palavra mais empregada. Porém, mais significativo que constatar a profusão de sua presença é perceber a dinâmica de seu emprego, ou seja, verificar o como, o por que, a causa que leva alguém a referir-se ou relacionar-se com outra pessoa chamando-a de senhor.


Quase sempre senhor é palavra que irrompe da dinâmica do encantamento do encontro. É do vigor dessa dinâmica que Maria ao ser visitada pelo Anjo é levada a exclamar: Eis aqui a serva do Senhor. O mesmo se dá com cada um dos Apóstolos e, de uma ou de outra forma, com todos os vocacionados, como, por exemplo, com Francisco que, no famoso sonho de Espoleto, ao ser visitado em forma de sonho por uma pessoa misteriosa irrompe numa jubilosa, graciosa e benevolente exclamação: Senhor que queres que eu faça?


Senhor, é portanto, palavra que nasce da profunda experiência de ser amado, querido, eleito sem nenhum merecimento pessoal, mas por pura iniciativa daquele que nos amou por primeiro. Longe, portanto, dessa palavra, pelo menos em sua pureza originária, todo e qualquer conotação de poderio, prepotência, status, dominação, mando e desmando.


A riqueza da expressão em nome do senhor aparece, também, quando olhamos a palavra latina dominus que deu origem a palavra senhor. Dominus, contém a palavra domus que significa casa. Dominus, Senhor, portanto, indica o modo de ser de quem está em casa, isto é, na dinâmica do pai de família que, a exemplo de Adão, cuida para que cada membro ou criatura disponha de tudo o que precisa para vir-a-ser e crescer em sua identidade. Nesse sentido dominus ou senhor tem o mesmo modo de ser de servo, como muito bem explicita Jesus na Última Ceia.


O cuidado pelos seus familiares ou súditos é que levava os povos antigos a estabelecerem tronos para seus governantes, reis e soberanos. Assentados em níveis mais elevados tinham, esses, condições privilegiadas para melhor perceber e sentir as necessidades dos súditos e servos. Compreende-se, também, agora, porque a imagem de Jesus Cristo crucificado em nossas igrejas é sempre posta lugar elevado. Ele é o Senhor e ao mesmo tempo o servo bom e fiel colocado pelo Pai, à frente de seus para dar a cada um, a seu tempo, o alimento necessário.


A experiência do encontro, evocada aqui na Regra pelo em nome do Senhor, desperta no discípulo a dinâmica da obra do bem-fazer, prenhe de humildade graciosa e de gratuidade humilde, comprometida com o bem agir da própria origem, o Senhor-servo. A obra do servo, do discípulo ou filho, porém, não se dá, jamais, por mera decisão sua. Pois, agora, a modo de filho e servo, tudo o que empreende e realiza procede do vigor dessa afeição, da vontade e do ânimo do novo Senhor. Ora, o que se espera do discípulo e servo é apenas fidelidade; que, esteja onde estiver, faça o que fizer, jamais deixe de estar e de fazer no nome, isto é no vigor do seu Mestre e Senhor.


A reverência de Francisco e Clara ao mistério do em Senhor, revela, acima de tudo, a experiência de servos e discípulos. Por isso, aqui, como na Sagrada Escritura, Pai ou Senhor não tem nenhum significado de “criador”, “chefe”, “prior”, “superior”, ou “líder”. Não tem, portanto, conotação com dominação ou imposição, no estilo de senhor-escravo, patrão-empregado, superior-súdito, chefe-funcionário. Na Sagrada Escritura, Senhor é palavra chave do relacionamento e da reverência que vem de uma profunda e inefável intimidade originada do Mistério do Encontro no Amor. Conseqüentemente, quem não demonstra nenhuma forma de sensibilidade e reverência para com o mistério da vida, pulsante nos seus próximos, consangüíneos e demais criaturas, dificilmente vai entender o que significa, com precisão, estar na Vida e na Regra franciscana em nome do Senhor.


Em nome do Senhor em forma exclamativa não é, portanto, mera e piedosa lembrança ou descrição jornalística de nossa origem franciscana, mas evocação que brota da pertença ao princípio originário de nossa existência e participação “umbilical” do Mistério mais profundo do sentido da vida e de toda a humanidade, trazido a este mundo por Jesus Cristo, o Senhor dos senhores: sermos, com Ele e no seu Espírito, nós também, filhos queridos do Pai nosso que está nos céus. Assim, o núcleo central e real da Vida franciscana, a Regra com a qual sempre as Irmãs haverão de se medir, a inspiração que sempre deve iluminar os passos das seguidoras de Clara e Francisco será, tão só e unicamente, Jesus Cristo que, de mil e uma forma, em caminhos inefáveis, sempre de novo e de forma nova, se oferece aos seus eleitos para torná-los familiares e domésticos seus.


Ao escrever na abertura da Regra em nome do Senhor Francisco e Clara fazem ecoar o que já estava soando no mais profundo de seu coração, como fonte e origem de sua nova vida. Assim, o Senhor, compreendido como a suma Pobreza, revelação do mistério mais íntimo e profundo do próprio Deus, é quem vai iluminar e animar todas as dimensões da Vida franciscana apresentadas e desenvolvidas ao longo dos diversos capítulos da Regra.


Colocar o Senhor como princípio e fonte originária da Vida franciscana implica em determinar que todos os nossos afazeres diários não estão aí, soltos, ao deus dará, nem se movendo ao ritmo de qualquer outra melodia, Vida ou Regra, mas ligados e dançando sempre ao ritmo e ao sabor do amor, da luz e do vigor que emergem da pessoa de Jesus Cristo, o Senhor dos senhores.


Em nome do Senhor, enfim, indica que somos todos da mesma estirpe divina. Nesse sentido nossa Regra segue o princípio da grande tradição do Povo de Deus que, em vez de entender a História da Salvação como uma seqüência de fatos, considera-a, antes como História do Amor que nos amou por primeiro.


Assim, ler nossa Vida e nossa Regra não é outra coisa senão beber do manancial de água viva da nossa origem; é entrar no processo de conhecimento (leia-se: co-nascimento) e de proclamação do nome do Senhor em nossa vida; é tornar-se participante do novo céu e da nova terra, impregnados e conduzidos pelo Espírito do Senhor e seu santo modo de operar.


[1] Entre os diversos sentidos de mistério deve-se destacar: obra, operação, plano, desígnio e história ou aventura divina.

Ilustração: Saint Francis of Assisi Gave the Canon to Franciscan Orders / Niccolò Antonio Colantonio. Entre 1440-1470. Napoli : Museo di Capodimonte. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Colantonio_002.jpg acesso em 19 maio 2010.

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