quinta-feira, 26 de maio de 2016

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Pistas homiléticas

CORPUS CHRISTI
20/05/2016


Liturgia da Palavra: Gn 14, 18-20; Sl 110 (109; 1Cor 11, 23-26; Lc 9,11b-17.
Mensagem-Tema: Eu sou o Pão vivo descido do céu! Quem comer deste pão viverá eternamente.
Sentimento: adoração profunda e humilde
Imagem: Última Ceia
Introdução
Outrora, multidões corriam atrás de Jesus, muitos por causa do pão material. Milhares e milhares de fiéis saem hoje às ruas para expressar jubilosa e publicamente sua gratidão ao mistério maior e mais profundo de nossa fé, conhecido como “Corpus Christi” (Corpo de Deus).
  1. Um Deus que é Rei — Sacerdote-Sacrifício
A primeira toada acerca do sentido da solenidade de hoje vem da primeira leitura, do livro do Gênesis. Abrão havia terminado e vencido a guerra com os povos vizinhos. Era hora de refazer e buscar uma paz duradoura. Surge, então, uma figura misteriosa com um gesto também misterioso. “Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho e como sacerdote do Deus Altíssimo, abençoou Abrão...”. Após o sacrifício, Abrão entregou-lhe o dízimo de tudo. Estava, assim, selada e restabelecida a Paz e a convivência não apenas entre Abrão e os povos vizinhos, mas também entre estes com Deus e vice-versa.
Na Carta aos Hebreus, Melquisedec é tomado como uma prefiguração de Cristo rei-sacerdote e o salmo 109 (110), que entoamos na liturgia de hoje, diz: “Tu és sacerdote para a eternidade segundo a ordem de Melquisedec” (v. 4). Jesus Cristo aparece, assim, como o rei-sacerdote que oferece, neste caso, o seu próprio corpo e sangue como sacrifício, tornando-se assim, além de rei e sacerdote, também a própria oferenda, o sacrifício. Ao consumar o seu sacrifício na Cruz, Cristo consumou-se a si mesmo, bem como a grande obra da pacificação dos homens entre si e destes com Deus – a salvação universal. É o seu famoso: “Consumatum est” (Tudo está consumado) (cfr. Jo 19,30).
  1. Pão e Vinho
A oferenda do rei-sacerdote Melquisedec é pão e vinho. O pão é alimento elementar, essencial, no cotidiano. Indica o necessário, o imprescindível, para a vida do homem. É evidente, aqui, um prenúncio do “Pão da Vida”, o pão eucarístico, o alimento espiritual do cristão.
O trigo transformado em pão é certamente um dos simbolismos mais expressivos do mistério salvador que Deus realiza em nós através de Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo Rei, sacerdote e Sacrifício. Isto é inédito! Nunca em outras religiões, o rei e o sacerdote se fazem a vítima ou o sacrifício pelo seu povo. É sempre o contrário: o povo é sacrificado pelo e para seu rei, pelo ou para seu deus. Por isso, com razão, Jesus que se encarna e se deixa triturar em sua vontade própria até a morte e morte de Cruz para fazer a vontade do Pai e que, após sua Ressurreição, assume a forma de pão comível e de vinho bebível é chamado com razão de “Pão vivo e verdadeiro descido do Céu”, o “Pão nosso de cada dia”.

À simbologia do trigo, da farinha e do pão se acrescenta a do fermento que, neste caso, é ambígua. Se, por um lado significa a transformação espiritual, por outro lado, por provir da putrefação, pode significar também a corrupção. Por isso, dizia Jesus aos discípulos: “Cuidai-vos do fermento dos fariseus! ”. Paulo, aproveitando deste significado do fermento, lembra aos discípulos de Cristo – os cristãos – que devem ser massa sem fermento (1 Cor. 5, 7); que precisam se tornar o que são (Rm 6, 11-12; Cl 3, 3-5): “pães sem fermento”, isto é, íntegros, inteiros, simples, sem nenhuma corrupção no seguimento de Cristo, na vida nova que ele inaugurou com sua morte sacrifical.
Semelhante ao pão, também a simbologia do vinho elaborado pelo esmagamento da uva originada da videira, nos transporta para realidades que são a raiz, o fundo de nossa existência. A primeira e mais significativa de todas é o amor. Assim como o vinho é, por assim dizer, o sangue da uva, o Amor que é Deus, que é Jesus Cristo tudo suporta, carrega e sustenta; um Amor-Doação, amor de profunda e mútua entrega, semelhante ao amor dos esposos, capaz de levar a sair de si, desprendendo-se de tudo para elevar até o mais alto êxtase, como se pode ver em alguns místicos. São Francisco, por exemplo, movido pela dulcíssima melodia deste amor, costumava tomar nas mãos dois gravetos e, como se fossem violinos (Cf. 2C 127), fazia ressoar a música da criação, tão bem decantada, depois, no Cântico do Irmão Sol.
Para os antigos, pão e vinho eram símbolos, também e respectivamente, da vida ativa e da vida contemplativa, dos pequenos e dos grandes mistérios. Assim, o milagre da multiplicação dos pães impressiona pela quantidade, isto é, a superabundância dos pães; já o milagre da transformação da água em vinho em Caná da Galileia, impressiona pela qualidade, isto é, pelo sabor excelente do vinho “melhor”. Cristo, no Novo Testamento, apresenta-se tanto como o Pão da Vida, o Pão do Céu (cfr. Jo 6), dimensão ativa, quanto como a verdadeira Videira (Jo 15, 1-5), dimensão contemplativa.
  1. Tomai e comei, isto é o meu corpo, tomai e bebei, isto é o meu sangue
Nunca é demais insistir, como o faz São Paulo, hoje em sua carta, que Cristo entregou o memorial de sua Paixão, em forma de ceia, dizendo “Tomai e comei, isto é meu Corpo, tomai e bebei, isto é meu sangue”. Isto é muito forte, quase não dá para acreditar! Deus se fazendo pão e vinho (“coisa”, “matéria”) e pedindo para que nós o comamos e o tomemos! Ele não diz: “Olhai, para mim, eu sou um espírito, me contemplai, me adorai! ”. Romano Guardini atentava para o fato de que, antes de uma devoção religiosa, a Eucaristia é ação sacra em que o evento da Cruz, que foi antecipado e prenunciado na última Ceia, atua em seu vigor e em sua vigência. Eucaristia não é representação, encenação, simbolização, mas a própria realidade, a Pessoa mesma de Cristo se doando, sempre e de novo, na Cruz.
Por isso, São Francisco costumava contemplar a vinda de Cristo na Eucaristia como uma atualização da vinda de Cristo na encarnação, recordando-nos que todos os dias (Ele) se humilha descendo do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote, a fim de ser Deus-conosco até o fim dos séculos (Ad I). Neste sentido também se expressava São João Crisóstomo:

Ó tremendo mistério! Ó inefável desígnio do divino conselho! Ó inefável bondade! O Criador se oferta como alimento à criatura, a própria vida se oferece aos mortais como comida e bebida.
A Sequência da missa de hoje expressa a maravilha da Igreja ante este mistério (sacramento). O Pão dos anjos se fez Pão dos homens. É o mesmo que canta o famoso canto “Panis Angelicus”, que é a penúltima estrofe do hino "Sacris solemniis", escrito por São Tomás de Aquino para a Festa de Corpus Christi:
Panis Angélicus, (O Pão dos Anjos)
Fit panis hominum, (Se faz Pão dos homens)
Dat panis cœlicus figuris terminum. (O Pão do céu põe fim às prefigurações)

O Res mirabilis! (Ó coisa admirável)

Manducat Dominum, (consome a Deus)
Pauper, pauper servus et humilis! (O Pobre, pobre, o servo e humilde).
A solenidade de hoje, se caracteriza, também, como um ato de grande e profunda adoração. Adoração, porém, não como quem se coloca diante de uma realidade fixa, estática ou quase física, mas, antes como quem vê Deus “se matando”, se desdobrando em mil e uma forma para poder ser recebido e assim poder estabelecer conosco um ”sacrum convivium”. Daí a necessidade de também nós respondermos a tão inaudita iniciativa, pelo menos com o desejo de adorá-lo com um profundo ato de fé, isto é, crendo que é assim que Ele quis e quer “estar sempre conosco, até a consumação dos séculos (Mt 8,26). Aliás “adorar’, significa, justamente, o ato de “levar à boca” aquilo que se ama ou do que se necessita como, por exemplo, o alimento, ou como a criança que leva à boca o seio da mãe afim de sugar-lhe o leite da vida, ou melhor ainda, como os amantes trocam o beijo do mistério do amor que lhes feriu o coração e dá o sentido de sua vida.
  1. A superabundância do Pão
Além do mais, Corpus Christi, principalmente, através do Evangelho de hoje, ajuda-nos a contemplar o rosto misericordioso do Pai que se revela em Jesus que, além de acolher as multidões, fala-lhes do Reino de Deus, cura-lhes as enfermidades e sacia-lhes a fome com o famoso milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Este milagre, porém, é antecedido por outro, não menos significativo: a transformação das multidões (hoi óchloi) em povo (laós). “Fazei que se instalem em grupos de cinquenta”, comanda ele.
Povo, mais do que uma simples multidão, mais do que mera sociedade organizada, é uma comunhão de comunidades, animadas por um único e mesmo espírito: uma “Comunidade de Comunidades”, como nos pede a CNBB, hoje. Das multidões que o seguiam, Jesus fará surgir, graças ao ministério dos Apóstolos, um Povo, a Igreja, isto é, a Assembleia (Ekklesia) dos chamados ao seu discipulado; Povo ao qual, mediante o ministério dos sucessores dos Apóstolos, Ele irá alimentar, pelos séculos afora, com o pão de sua Palavra e com o Pão do seu próprio Corpo.
O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes – como a Eucaristia – são sinais, sacramentos de outro milagre, de outra multiplicação, de outra “ação graciosa” que está sempre acontecendo, desde a Criação quando Deus abençoou a terra para produzir alimentos, e abençoou os mananciais de água doce e os mares, para multiplicar os peixes. Assim, através da Eucaristia, caem de nossos olhos as escamas, é tirado de nossos corações o peso da banalidade das coisas do nosso cotidiano a fim vermos a multiplicação dos pães e dos peixes com a qual somos agraciados a toda hora e todos os dias desde a Criação do mundo.
O relato deste milagre vem recheado de simbolismos. Os doze cestos recordam os doze Apóstolos, a partir de cujos ministérios se constituiria o novo Povo de Deus, a Igreja de Cristo. Beda, o venerável, lê o declinar do sol como o fim dos tempos, que foram decretados com a morte de Cristo. Nos cinco pães vê o sinal da Torah que, por meio dos cinco livros o povo da Antiga Aliança foi saciado com a Palavra de Deus. Afinal, “nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. O número cinco remete, ainda, aos cinco sentidos, por meio dos quais o homem terreno providencia sua orientação no mundo.
Os dois peixes, além dos dois Testamentos, significariam a Palavra de Deus, que a Igreja distribui às multidões, organizadas em grupos e reuniões. Além do mais, os peixes, por serem animais das profundezas das águas, recordam o mistério (o Verbo eterno do Pai, Jesus Cristo) oculto no fundo do abismo da deidade, re-velado tanto na Torah e nos Profetas do Antigo Testamento, quanto nos evangelhos e nos escritos apostólicos do Novo Testamento.
Conclusão
Concluímos com duas exortações:
São João Crisóstomo: “Compreendes como na terra contemplas o que há de mais precioso? E não somente o vês, mas ainda o tocas; e não somente o tocas, mas também o comes; e depois de tê-lo recebido, regressas para a tua casa. Purifica, portanto, tua alma, prepara teu coração para a recepção destes mistérios”.
São Francisco de Assis:
Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro e exulte o Céu, quando, sobre o altar, na mão do sacerdote, está o Cristo, o Filho do Deus vivo! Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó humildade sublime! Ó sublimidade humilde! O Senhor do universo, o Deus e o Filho de Deus, assim se humilha e se oculta sob a módica fórmula de pão para a nossa salvação! Vede, Irmãos, a humildade de Deus e derramai diante d'Ele os vossos corações; humilhai-vos também vós para que sejais exaltados por Ele. Nada, pois, de vós retenhais para vós, para que vos receba a todos por inteiro Aquele que se vos dá todo inteiro” (CO 26-31).

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini

PS. Próximas “Pistas homiléticas” somente para o 10° Domingo do TC.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Pistas homiléticas

Solenidade da Santíssima TRINDADE
22/05/2016


Liturgia da Palavra: Pr 8, 22-31; Sl 8; Rm 5, 1-5; Jo 16, 12-15
Mensagem-Tema: Bendito seja Deus Pai, bendito seja o Filho Unigênito e bendito o Espírito Santo.
Sentimento: Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo!



Introdução
Domingo passado, com a solenidade de Pentecostes, concluímos as celebrações do Mistério pascal, centralizado em Jesus Cristo crucificado, princípio da nova humanidade. Hoje, dando início ao “Tempo Comum” da Liturgia, celebramos a fonte, a origem de toda esta profunda e inaudita história de bem-querer a partir da qual nascemos e vivemos: O Pai, o Filho e o Espírito Santo: a SS Trindade.

  1. Do Deus Uno ao Deus Trino
Durante os últimos séculos, entre nós católicos, a SS Trindade era vista, principalmente, como uma verdade fixa, intocável que se devia aprender e crer como dogma fundamental de nossa fé. A partir do Vaticano II, porém, somos convidados a vê-la, também e principalmente, como um mistério presente e atuando na criação do mundo, na história dos homens, na Igreja e principalmente no dia-a-dia de nossa própria vida. Um mistério, portanto, que se deve contemplar, amar e acolher.
Este mistério, veio se revelando aos poucos através da História sagrada. Enquanto no Antigo Testamento, Deus se revelou como o Um (Dt 6, 5), no Novo nos foi revelado como Três – Pai e Filho e Espírito Santo - conforme o conhecido mandato de Cristo aos Apóstolos: “Ide, batizai a todos os povos, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19).
Falando desta revelação progressiva, paulatina e ascendente, assim se expressa São Gregório de Nissa (séc. IV): “O Antigo Testamento claramente proclama o Criador (Pai) e obscuramente o Filho; o Novo revelou o Filho e insinuou a divindade do Espírito, onde manifestou-se mais explicitamente” no dia de Pentecostes. Seguindo este princípio também a Igreja na sua missão de evangelizar seus fiéis e celebrar o mistério da salvação não o faz todo de uma só vez, mas seguindo o antigo princípio da mistagogia, insistentemente recomendado, hoje, pelo Papa Francisco (Cf. EG 160-168).
Assim, pela mistagogia das celebrações do mistério da fé somos conduzidos “por paulatinas aproximações ou subidas”, como diz o mesmo São Gregório, à contemplação do mistério de Deus. À medida que vamos “avançando e progredindo de glória em glória, brilha a Trindade com luz cada vez mais resplandecente”, completa o mesmo santo. Também nosso Papa, falando desta mistagogia, diz que cada ser humano, cada cristão precisa sempre mais de Cristo. Por isso nossas celebrações não deveriam deixar que alguém se contentasse com pouco, até o dia em que cada um pudesse, a exemplo de São Paulo, exclamar com plena verdade: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vivem mim” (Gl 2,20) (Cf. EG 160). Assim, toda mistagogia se transforma numa verdadeira anagogia (subida).
  1. Assinalados com a Cruz em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo
Desde o Batismo, à toda hora, nós cristãos traçamos sobre nossa fronte e nosso peito o sinal maior de nossa fé – a Cruz - com a invocação: “Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Assim, do coração do homem cristão brota este sinal e estas palavras que evocam e invocam o arcano maior de sua fé: o mistério da Trindade, que, silenciosamente, ama. E ama, por ser amor. O ápice, pois, da revelação de Deus em Cristo e por Cristo se expressa nas palavras de São João: “Deus é amor”. Para saborear, pois, o mistério da Trindade é preciso ser amante dela. É preciso que a fé se transforme em amor: nesse amor, do Deus amor, que é Um e que é a Trindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Se no passado, a espiritualidade cristã centralizava-se no Deus-Uno, hoje, a partir do Vaticano II, descobre-se e parte-se cada vez mais da riqueza profunda do Trino Deus: Pai-amante, Filho-amado, Espírito-dom, o amor-gratuidade, o amor-ternura, em que Amante e Amado se doam e se recebem mutuamente, numa unidade de ser e numa comunhão de viver: a Comunidade, a Família divina.
Pai: Princípio de quem tudo provém, amor amante, abissal, doação fontal, raiz da deidade, origem eterna do Filho e do Espírito Santo, princípio sem princípio de todo o ser e de todo o viver, em Deus, no humano e no universo. Filho: amor amado, recepção originária, primeiro ramo, primeira irrupção da deidade, rebento divino, palavra-imagem do Pai, arquétipo e protótipo do humano, à imagem do qual todos nós fomos criados. Espírito Santo: amor-dom do Pai e do Filho, ternura do abismo do coração paterno de Deus, revelada a nós no Filho encarnado, gratuidade fontal, dádiva pura e simples em que Deus Pai e Deus Filho se nos doam a si mesmos, bondade que se comunica nos nossos corações e em toda a criação.
Trindade: Vida divina que ferve, e, fervilhando, transborda, superflui, derrama-se na criação do universo para a santificação de todas as coisas e deificação dos homens e mulheres que aprendem a lição do amor gratuito e misericordioso, tornando-se “luz do mundo e sal da terra”.
É com este modo de ser e de viver que fomos assinalados pelo Batismo, convocados, portanto a virmos ser pais no Pai, filhos no Filho, sopros divinos no Espírito Santo. Foi este modo de ser e de viver que São Francisco descobriu e assumiu quando na igrejinha da Porciúncula, por ser adorador da Trindade, abriu por três vezes o santo Evangelho (Cf. LTC 29) e que depois retomou para si e para os seus frades como Forma de Vida quando escreveu a primeira Regra: “Em nome do Pai e do filho e do Espírito Santo! Esta é a Vida do Evangelho que Francisco pediu ao senhor Papa...” (RNB Pró).
Assim, com este sinal, que deu origem em nós o ser de Cristo, é que nós cristãos e franciscanos iniciamos e concluímos sempre de novo os dias, os trabalhos caseiros ou evangélicos, as Liturgias e demais orações, as noites, os meses, e anos de nossa existência, enfim, a vida e a morte.
  1. A Trindade santa nossa origem nossa casa nosso céu
As leituras de hoje não falam explicitamente da SS. Trindade como tal. Quem o faz é a Antífona de Entrada: “Bendito seja Deus Pai, bendito seja o Filho Unigênito e bendito o Espírito Santo. Deus foi misericordioso conosco”. Do Pai nos fala o Evangelho quando Jesus diz que “tudo o que o Pai possui” é também Dele. Do Filho nos fala a 1ª leitura, figurado como Sabedoria originária, o Primogênito de toda a criatura, Aquele que sustenta todo o Universo, proclamada, mais tarde, por São Paulo como Jesus Cristo crucificado. Do Espírito Santo fala tanto o Evangelho, chamando-o de “Espírito da Verdade”, como a 2ª leitura atestando que é Ele quem derrama em nossos corações o amor de Deus, no qual, com o qual e pelo qual, também nós, por nossa vez, podemos amar o Pai e o Filho.
Em Goiás há um santuário em homenagem à Trindade no qual se guarda um medalhão que representa o Pai e o Filho coroando Maria, sobre a qual desce o Espírito Santo. Este medalhão recorda o arcano da Trindade que não exclui, antes inclui, a criatura finita, representada pela Mulher, Maria. De fato, todo o universo da criação e todos os homens e mulheres de boa vontade estão representados em Maria, filha amada do Pai, mãe amorosa do Filho, esposa fecunda do Espírito (Cfr. Ant. do Ofício da Paixão, de São Francisco). Esta imagem insinua que a Trindade, de certo modo, dispõe-se a integrar na sua unidade, na intimidade de sua vida mais íntima, a humanidade toda e, com ela, a criação toda.
Não podemos, pois, e por isso, deixar de recordar nesta solenidade, nosso Batismo, através do qual, por ordem do Senhor aos Apóstolos, fomos batizados. Batizados “em nome de...” significa mergulhados, inseridos para dentro “do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, o Mistério da Trindade santa, nossa origem, nossa casa, nosso céu. Estamos ligados, unidos a este Mistério como os ramos e o tronco à sua raiz; comungamos de sua vida como a criança no útero materno comunga da vida da mãe. Por isso, toda criatura, a exemplo do Pai, é geradora de vida e cuidadora, como se pode ver com toda clareza nas árvores e na própria irmã nossa a mãe terra “que produz frutos diversos e coloridas flores e ervas” (CSOL); toda criatura, a exemplo do Filho, é obediente e acolhedora da vida, como se pode ver, de novo, nas árvores e na própria irmã nossa a mãe terra que obedecem e acolhem o sol, a chuva e todo tipo de intempéries na alegria do vigor de sua santa paciência (cruz); toda criatura, a exemplo do Espírito Santo, é princípio de doação e comunhão, como o testemunham com clareza, mais uma vez, as árvores e a terra que sabem conviver em profunda comunhão com todas as demais criaturas, até mesmo com aquelas que as agridem e maltratam. Assim, se pudéssemos fazer um Raio X haveríamos de encontrar no íntimo de cada criatura como princípio originário de seu ser e existir: o Pai criando, o Filho obedecendo e o Espírito Santo se doando e se comunicando: o “Deus charitas est”.
É neste sentido que devemos ler esta exortação do nosso Papa: “O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira Trindade» (LS 128). Se, em todas as criaturas, há o vestígio da Trindade, na alma humana há a imagem, como meditava Santo Agostinho. Na alma humana, a memória (autoconsciência e auto-presença) alude ao Pai, o pensamento (intelecto) alude ao Filho (o Verbo de Deus) e a vontade-amor alude ao Espírito Santo. A Trindade, portanto, como dizia Santo Irineu, é, para nós a “regra da fé”, “fundamento do edifício” do nosso crer e do nosso agir em Cristo; é Aquela (ou são Aqueles: Deus Pai, Filho e Espírito Santo) que – dominicalmente confessamos no Símbolo dos Apóstolos; Aquela ou Aqueles que, por sua misericórdia, “a nós que outrora não éramos povo”, nos congregam e nos fazem “Povo de Deus” (1Pd 2,10), Igreja.
Dentro deste sentido podemos ler a primeira leitura de hoje segundo a qual a relação das duas primeiras Pessoas da SS. Trindade - o Pai com o Filho - está insinuada no relacionamento do Criador com a Sabedoria (Sophia). Tudo o que aí se diz acerca da Sabedoria pode se aplicar também à Humanidade, esta criança querida, bem-amada de Deus, que brinca diante dele enquanto ele trabalha. A criança parece dizer algo, aqui, da inocência do início, da liberdade criativa do vigor fontal, a jovialidade do Sim ao ser e à vida, bem como o homem novo, nascido do sangue de Cristo na Cruz.
Falamos da Trindade, como Mistério. Mistério, porém, antes daquilo que não compreendemos é aquilo ou Aquele que nos com-preende, nos envolve, nos abraça, nos acolhe, como no medalhão do santuário de Trindade: nossa origem, nossa casa, nosso céu.

Conclusão
Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura chega a dizer que o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada criatura «testemunha que Deus é trino. Este santo franciscano ensina-nos que toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que poderia ser contemplada espontaneamente se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler a realidade em chave trinitária” (Exortação do Papa Francisco, LS, 239).
Já que somos incapazes de olhar o universo com a mirada límpida da criança – o novo Adão - a Trindade nos deu, então, o livro da Escritura Sagrada, que nos torna capazes de ver em tudo o vestígio e as marcas da Trindade, e, na nossa própria alma, a sua Imagem. Assim, podemos ouvir em toda a parte, fora e dentro de nós, um mesmo hino de louvor, que sussurra por entre o ruído das máquinas e o fragor dos tumultos da história; um hino que se nos torna mais nítido e retumbante quando, no fundo de nossa alma nos recolhemos, e deixamos ser o silêncio, em que repousa toda a inquietação do mundo, do universo e de nossas próprias almas:
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo! Amém! Amém! Amém!” (São Francisco).

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini



terça-feira, 10 de maio de 2016

Reflexões para Liturgia


Pentecostes
15 de maio de 2016

Liturgia da Palavra: Atos 2, 1-11; 1 Cor 12, 3b-7.12-13; Sl 103 (104); 1Cor 12,3b-7.12,13; Jo 20,19-23
Mensagem-Tema: O Espírito do Senhor encheu o universo inteiro
Sentimento: Desejemos acima de tudo ter do Espírito do Senhor e seu santo modo de operar


Introdução
Domingo passado, na sua Ascensão ao Céu, Jesus entregou aos Apóstolos a missão de evangelizar todos os povos. Mas, eles ainda não haviam sido batizados para esta missão. Faltava Jesus incendiar-lhes o coração com o fogo, o poder de sua Paixão. Este milagre vai acontecer hoje: Solenidade de Pentecostes.

Pentecostes e sua história

Pentecostes, para os antigos judeus, era a festa das colheitas na qual celebrava-se, também, a aliança que Deus estabelecera com eles através da Lei dos Dez mandamentos confiada a Moisés no alto do monte Sinai. No embalo e na memória deste dom antigo, a Igreja celebra hoje o dom da nova Aliança, assinalada, agora, no coração de seus fiéis pelo sangue de Cristo derramado em sua crucificação no alto do monte Calvário. Nunca é demais repetir que tudo se dá na Cruz. É neste grande Ato que Deus comunica a eles e a nós o Amor “maior” e os capacita a doar a vida por seus amigos e inimigos.
Este novo dom de Cristo aos apóstolos se revelou em toda a sua plenitude, cinquenta dias depois, através de alguns sinais muito expressivos, principalmente por um vento impetuoso que encheu todo o lugar onde se encontravam reunidos e por línguas de fogo que, vindas do alto, pousavam sobre a cabeça de cada um deles e de Maria, ungindo-os, assim com a Potência de Deus, bem como com a graça da comunhão entre povos diversos e de línguas diferentes.
O Espírito Santo, porém, já vinha se manifestando ao longo de toda a História Sagrada. No livro do Gênesis, por exemplo, aparece como Sopro (Ruach) que dá vida, alma, ânimo, às criaturas e ao homem: “O Senhor Deus soprou-lhe nas narinas o Sopro da vida e o homem tornou-se um ser vivente” (Gn 2,7). É através dele, também, que alguns fiéis se tornam heróis como Sansão, pastores como Moisés e os juízes, profetas como Elias, Jeremias, Isaías, etc.
Mas, é em Cristo que sua ação se revela em toda a plenitude. É pela ação dele que o Verbo se faz Carne no seio da Virgem Maria; é o mesmo Espírito que toma conta de Jesus no Batismo, incendiando-lhe o coração de amor e de paixão pelo Pai e pelos homens, principalmente pelos mais abandonados, doentes e pecadores; é ele ainda quem sustenta Jesus nas tentações do deserto e em todo o percurso de toda a sua vida pública, culminando na grande provação do abandono pelo Pai na Cruz.

Pentecostes, a plenitude do Espírito Santo

Segundo São Gregório Nazianzeno (séc. IV), a presença e a atuação do Espírito Santo através de Cristo nos discípulos se dá em três períodos diferentes e de três modos diferenciados. Primeiramente, e de modo obscuro, o Espírito Santo atuava nos Apóstolos pelo simples fato de conviverem com Jesus e seguindo seus passos e ensinamentos. Em segundo lugar, e de modo mais explícito, depois de sua glorificação pela ressurreição. Neste momento, o Espírito Santo atuava nos discípulos como o Sopro do Cristo ressuscitado que lhes foi comunicado e que lhes deu o poder de perdoar os pecados, fazendo-os comungar, assim, da reconciliação com os homens que o Pai quis realizar pelo Filho, por meio de sua morte e ressurreição. É o que nos recorda o evangelho de hoje. Finalmente, após a Ascensão ou o regresso do Filho aos céus, no Pentecostes, a atuação do Espírito nos discípulos se manifestou de modo novo, mais evidente e pleno como vemos na primeira leitura da Liturgia de hoje. Agora não está mais presente apenas de modo velado, como Potência do Alto, mas de modo desvelado, essencial, substancial, Ele mesmo, em Pessoa, fazendo de nosso mundo, de cada criatura e de cada um de nós sua habitação, o céu na terra, Deus no homem para que a terra estivesse no céu e o homem em Deus. Eis o sentido novo da história e da humanidade, que reúne todos os homens, de todas as tribos, línguas, povos e nações.
O que hoje se celebra, portanto, é o ápice, o coroamento, a plenitude de todas as manifestações, vindas, revelações, de todas as operações ou doações que Deus faz de Si mesmo, como muito bem o proclama a Antífona da Entrada: “O Espírito do Senhor encheu o Universo inteiro, Ele mantém unidas todas as coisas e conhece todas as línguas, aleluia!”
Cumpriu-se, assim, a promessa do Pai, a saber, de derramar o Espírito Santo universalmente, conforme a profecia de Joel: “Derramarei o meu espírito sobre todo o ser vivo: vossos filhos e filhas profetizarão, os vossos anciãos terão sonhos e os vossos jovens terão visões; também sobre os meus servos e servas derramarei, naqueles dias, o meu espírito” (Joel 2, 8).
Ao dar-nos seu espírito, como nos deu, o Pai nos deu tudo ou melhor o Todo de Si mesmo e de uma só vez. Cometeríamos, pois um grande agravo a Deus esperar por outra vinda, outro dom do Espírito Santo não confiando neste que está aí, de modo definitivo e eterno, em nossos corações, aguardando nossa acolhida.

Pentecostes e a Igreja

Costuma-se dizer que foi neste dia de Pentecostes que nasceu ou que foi fundada a Igreja. Na verdade, o que hoje acontece é a epifania da Igreja, que, como diziam os Padres da Igreja, existe desde o primeiro justo da história, Abel, figura de Cristo. Com efeito, no Antigo Testamento, no Povo de Deus (Qahal = Ekklesia = Assembleia dos Chamados), fundado sobre os doze patriarcas, já se prefigura, o novo Povo de Deus, inaugurado e instituído por Jesus Cristo, e fundado sobre o testemunho dos doze apóstolos. Assim, o que acontece hoje é sua manifestação pública, solene e oficial tanto para judeus como para todo o mundo. Cristo já a havia inaugurado e instituído na solene noite de sua Despedida quando, na última Ceia, ordenara os Apóstolos viverem segundo a Potência do mandamento do novo amor, inaugurando assim uma nova Humanidade, uma nova História. Hoje, portanto, o Pai confirma publicamente, com o Envio do seu Espírito, o que o Filho havia instituído cinquenta dias antes. São Paulo, na segunda leitura de hoje, expressa esta congregação de povos pelo Espírito: “Na verdade, todos nós – judeus e gregos, escravos e homens livres – fomos batizados num só Espírito, para constituirmos um só Corpo. E a todos nós foi dado a beber um único Espírito” (1 Cor 12, 13).
Por isso, membros deste Corpo, desejemos, acima de tudo o “Espírito do Senhor e sua santa operação”, como dizia São Francisco. Que nós suspiremos, a cada dia pelo Espírito Santo, pelo devir de sua graça em nós, pelas virtudes gratuitas que ele concede – fé, esperança e caridade –, pelos seus sete dons (temor, piedade, ciência, fortaleza, conselho, inteligência e sabedoria) e pelos seus frutos: amor, alegria, paz, paciência, bondade, benevolência, fé, doçura, domínio de si (cfr. Gl 5, 22). E supliquemos:
Sem a vossa força
E favor clemente,
Nada há no homem
Que seja inocente...

Nomes e benefícios

O mistério do Espírito Santo e de sua operação, por ser o próprio Deus, ultrapassa todas as nossas tentativas de compreendê-lo. A Sagrada Escritura fala muito em Sopro. Trata-se do “sopro vital da própria ternura do amor do Deus de Jesus Cristo”, “que é tudo em todas as coisas” (Harada). O salmo de hoje canta este Sopro Sagrado do Pai e do Filho atuante em todas as criaturas, dizendo: “Se lhes tirais o alento, morrem e voltam ao pó donde vieram. Se mandais o vosso Espírito, retomam a vida e renovais a face da terra” (Sl 103/104).
A esse Espírito a Igreja clama, na Sequência da missa de hoje, como “Pai dos pobres”. Ele é o vigor da ternura de Deus que atua na nossa fraqueza. O seu gemido, como o gemido amoroso da pomba, nos consola e nos faz companhia. Segundo a lei do amor, pobre se une a cada pobre como pobre.
O Espírito Santo, como diz o Evangelho de João (14, 16), é, pois, “outro Paráclito”, que, como o primeiro Paráclito, que é o próprio Jesus Cristo, intercede por nós junto do Pai e nos dá o encorajamento, isto é, nos anima e alivia em nossas aflições (Cfr. 1 Jo 2,1). Assim, o Pai é consolador (“Pai de toda a consolação”), o Filho é consolador, o Espírito Santo é consolador. Os três, como um só Deus Consolador, se juntam à nossa solidão para nos fazer companhia, uma companhia íntima, que nos dissipa toda a desolação e nos enche de ânimo e de alegria. Por isso, a Igreja, na mesma Sequência da missa de hoje, diz:
Vinde, Pai dos pobres:
Na dor e aflições,
Vinde encher de gozo
Nossos corações.
Quem compreendeu e viveu profunda e intensamente o mistério desse Dom supremo de Deus aos homens foi São Francisco. Expressões como “ébrio”, “cheio do Espírito Santo”, “movido” ou “tomado pelo Espírito” proliferam em suas Legendas. Chegou a chamar a atenção dos frades para o fato de que não são eles, mas sim “o Espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor” (Ad 1). Determinou ainda que todos os Capítulos se realizassem na Festa de Pentecostes para que então os frades sentissem mais de perto que eles formavam uma Ordem não a partir deles e do que eles faziam, mas sim a partir do Espírito do Senhor e daquilo que Ele operava no meio deles. Pedia ainda que os frades contrapusessem o espírito de vanglória, soberba e prepotência de uma vistosa e longa cabeleira, pelo espírito de simplicidade, pequenez, humildade e minoridade de uma coroa simples e pequena. E concluía: “Junto de Deus não há acepção de pessoas (Rm 2,11), e o Ministro Geral da Ordem que é o Espírito Santo, pousa do mesmo jeito sobre (Is 11,2) o pobre e o simples (2C 193).

Conclusão: Evangelizadores com Espírito

Desde o vaticano II vivemos um novo Pentecostes. Por isso, a Igreja e a humanidade exigem “evangelizadores com Espírito”, diz nosso atual Papa Francisco. E ele mesmo explica: “Evangelizadores com Espírito quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia e abertamente (parresia), em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a ação corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus” (EG 259).
Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e frei Dorvalino Fassini


sexta-feira, 6 de maio de 2016

Pistas homiléticas


SOLENIDADE DA ascensão do senhor

8 de maio de 2016



Liturgia da Palavra: At 1, 1-11; Sl 46 (47) Ef 1, 17-23; Lc 24, 46-53
Mensagem-Tema: O Senhor subiu aos céus e está sentado à direita de Deus Pai
Sentimento: Os discípulos voltaram para Jerusalém com grande júbilo
Imagem: Cena da Ascensão

Introdução
Celebramos hoje a solenidade da Ascensão do Senhor. Depois de, durante quarenta dias, ter aparecido a algumas mulheres e aos apóstolos afim de testemunhar sua ressureição, o Senhor “se elevou à vista deles”, isto é, “subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso” (Credo).
  1. Ascensão e Ressurreição

Nos Atos dos Apóstolos, ao anunciar o mistério da Ascensão, Lucas tanto diz que Jesus “se elevou”, como, também, que “foi arrebatado ao céu” (At 1,1-11). Também Marcos fala em arrebatamento: “Então, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16, 19). O Apóstolo Paulo, por sua vez, ser refere à Ascensão como o coroamento do “sublime Mistério da Piedade” (tò tes eusebeías mystérion), isto é, da misericórdia que veio morar entre nós; mistério que, em última instância, é o próprio Cristo decantado, pelo próprio Paulo, com este breve, mas magnífico hino: “Ele foi manifestado na carne, / justificado no Espírito, / contemplado pelos anjos, proclamado entre os gentios, / crido no cosmo, / arrebatado na glória” (1 Tm 3, 16).
O mistério da Ascensão, portanto forma uma unidade com o mistério da Ressurreição. Sem aquele este não teria nenhum sentido, ficaria sem graça, sem nenhum benefício. Por isso, segundo João, no dia da Ressurreição, Jesus dá a Maria de Mágdala a tarefa de comunicar esta mensagem aos Apóstolos: “Eu subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é o vosso Deus” (Jo 20, 18). Enfim, Cruz, Ressurreição e a Ascensão é a mesma e única exaltação de Jesus Cristo.
  1. Ascensão e Envio
Lucas, além de testemunhar a Ascensão como conclusão do mistério pascal ele a apresenta também como preparação para o aviamento da missão dos Apóstolos. Por isso e para isso revela que naquela ocasião o Senhor “abriu-lhes o intelecto (nous) para que assim compreendessem as Escrituras”, isto é, sua paixão, crucificação e ressurreição; pediu-lhes, também, que em seu nome fizessem o anúncio da “metánoia” (conversão, transformação do pensamento) e do perdão dos pecados “a todos os povos, a começar por Jerusalém”. Finalmente, depois de instituir os Apóstolos como testemunhas (mártyres) de tudo isso, ele fala do envio do Espírito Santo. “E eis que eu enviarei a Promessa do meu Pai sobre vós” (Lc 24,49).
O Espírito Santo é chamado aqui de “a Promessa do Pai”. Isso quer dizer: o Espírito Santo, que o Cristo recebe do Pai e comunica aos que, em todos os povos, creem no Evangelho, é o cumprimento, a plenitude, a realização consumada, da divina revelação de Deus na história da salvação. O Cristo é o portador e o comunicador do Espírito. Manifesta-se assim a Obra trinitária da Salvação! O Pai que unge, o Filho que é o ungido (Messias, Cristo), e o Espírito Santo que é a unção, isto é, o vigor e a alegria de Deus: a “Potência” (Dýnamis). Tanto é que, logo em seguida, no Evangelho de hoje, o Espírito Santo é chamado simplesmente de “Potência” (Dýnamis): “Quanto a vós, permanecei na cidade (Jerusalém) até que sejais revestidos, do alto, pela Potência” (Lc 24,49).
Nunca é demais insistir que será somente mediante a investidura desta Potência do Pai que aqueles homens frágeis, simples pescadores, de alma mesquinha e interesseira, fechados em si mesmos, poderão dar conta da grandeza da incumbência que acabavam de receber: ser testemunhas do Cristo Crucificado e Ressuscitado por toda a terra. Assim, cumprirão sua incumbência não baseados no poder humano, mas no vigor, na virtude, na potência, que vem do Alto. É o mesmo Espírito de que fala o Anjo na anunciação a Maria e que, após o Batismo conduz Jesus pelas tentações no deserto à Galileia, para começar o seu ministério; o mesmo Espírito de que fala Lucas na leitura do Atos dos Apóstolos, proclamada hoje: “recebereis uma força, a potência do Espírito Santo que virá sobre vós” (Atos 1, 8).
Nos tempos antigos a unção, ou melhor, o óleo com que alguém era untado, ungido significava a penetração do vigor, da potência de Deus. Os reis eram ungidos. Devemos notar, pois, que ao despedir-se dos Apóstolos, Jesus o faz como o Ungido (o Cristo), que ele era e que ele mostrou ser, pela sua paixão e ressurreição. Por isso, sua derradeira despedida se dá de modo solene, semelhante à liturgia da unção de um rei: num gesto de homenagem régia e religiosa os Apóstolos se prostram diante dele para receber a bênção, a unção, a Potência do alto a fim de conseguirem testemunhar com paciência o mistério do amor misericordioso do Pai, assim como Ele, o Mestre e Senhor, o testemunhara até a morte e morte de Cruz. Se Cristo era o ungido do Pai, eles, agora, se tornam os ungidos, os “cristos” do Cristo, enviados a todos os povos, por toda a terra, para anunciar a alegria do Reino de Deus, o Evangelho.
A Ascensão, portanto, é também a solenidade do envio ou do aviamento da Missão dos Apóstolos, da Igreja, do cristão. Este parece ser o sentido da fala dos dois homens vestidos de branco que apareceram aos apóstolos: “Homens da Galileia, por que ficais aí a olhar para o céu?” Ou seja, acordem! Acabou a missão de Jesus. Agora está começando a de vocês.
  1. Ascenção de Jesus: primícia da elevação de toda a humanidade e de toda a criação

O Evangelho de Lucas termina falando da alegria dos Apóstolos. “Quanto a eles, após se terem prostrado diante dele voltaram para Jerusalém, com grande júbilo, e estavam sem cessar no Templo, bendizendo a Deus” (Lc 24, 52-53). Mas, qual o motivo de tão grande júbilo se o Mestre se ausentara, corporalmente, do meio deles? Segundo os Padres da Igreja Cristo é arrebatado ao céu como aquele que vai a nossa frente, abrindo caminho, para a nossa própria ascensão ao céu. O seu corpo é primícia dos que, permanecendo ainda neste mundo, vivem da esperança de um dia também serem elevados ao céu, para junto do Pai. N’Ele, a nossa natureza é honrada e elevada, recebendo todas as virtudes dos anjos e sendo introduzida diante da Majestade divina. São João Crisóstomo assevera que “teu corpo será igualmente levado aos céus, porque o teu corpo é da mesma natureza que o corpo de Jesus Cristo”.
Nós e Cristo somos, na verdade, um só corpo. A segunda leitura de hoje, tirada da Epístola aos Efésios, nos lembra disso: Cristo, que o “Pai da glória”, com sua Potência, ressuscitou dos mortos e colocou à sua direita nos céus, acima de todas as coisas, isto é, de todos os seres, corporais e espirituais, é a cabeça, isto é, o Princípio, de toda a Igreja, que é o seu corpo. Se somos um único corpo, e se a Cabeça já entrou no céu, então também o corpo entrará, sim, até mesmo a última parte do corpo, isto é, os pés, ou seja, os mais humildes da Igreja, serão recebidos no céu, diante do “Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória”. Todavia, não apenas nós, mas toda a criação conosco rejubila porque também ela participa desta elevação para junto do Pai comum, o Pai das misericórdias, pois, como diz São Paulo: tudo é vosso, vós sois de Cristo e Cristo é de Deus. Assim, Cristo é, como diz a epístola de hoje, “a plenitude (tó pleroma) que plenifica o todo em todas as coisas” (Ef 1, 23). A Ascensão de Cristo é, pois, a plenificação do cosmos. Por isso, segundo Santo Agostinho, para Jesus Cristo, “ir para o Pai e distanciar-se de nós significava mudar em imortal quanto de mortal ele tinha assumido de nós, e elevar ao mais alto do céu a natureza terrena da qual, por nós, ele tinha se revestido”.
Em Cristo, nossa humilde natureza, com sua corporeidade, isto é, com sua finitude, foi elevada ao céu e entronizada junto do “Pai da glória”. Como, então, não nos alegrar? “Quem não se alegrará, se ama Cristo, quem não se congratulará com aquela natureza mortal feita imortal, na esperança de que isso aconteça também com ele? ” (Agostinho). São Cirilo de Alexandria, por sua vez, diz que, com sua Ascensão, Cristo inaugura um caminho novo e vivo, um caminho que antes era intransitável, isto é, o caminho que dá acesso ao céu, ou melhor, ao Santuário celeste, como diz a Epístola aos Hebreus: “Cristo não entrou num santuário feito por mãos humanas, figura do verdadeiro, mas no próprio Céu, para Se apresentar agora na presença de Deus em nosso favor” (Hb 9, 24). Os Padres gostam de meditar no espanto dos anjos, ao verem algo de extraordinário: um homem, um mortal, ascender às esferas celestiais, e sentar-se no mais alto dos céus, à direita de Deus Pai.
Recordemos ainda que, assim como “o Senhor Jesus Cristo não deixou o céu quando de lá desceu até nós, também não nos deixou quando subiu novamente ao céu” (Santo Agostinho). Foi o que os dois homens vestidos de branco asseveraram aos Apóstolos: “Este Jesus que acaba de ser arrebatado para o céu voltará do mesmo modo que o vistes subir para o céu” (At 1,11). Por isso, daqui a alguns dias o mistério de hoje será completado com a vinda do Espírito Santo. Enquanto a parousía, isto é, o retorno de Cristo glorioso não acontecer, os tempos e os espaços, na terra, se alargarão, para que a alegria do Evangelho possa atravessar gerações e gerações até o fim do mundo, e possa se difundir, com a comunicação universal do Espírito Santo a todos os povos, até os confins da terra.
Conclusão
Se, portanto, com Cristo já estamos sentados à direita do Pai, jubilosos, a exemplo de São Francisco, vivamos neste mundo como cidadãos celestes; se como os Apóstolos fomos ungidos e revestidos com o vigor e a alegria da Potência de Deus, o Espírito Santo, para evangelizar todos os povos, sejamos cristãos “em saída” combatendo sempre em nós mesmos e ao nosso redor, o mundanismo espiritual de nossa autorreferencialidade (Papa Francisco na EG 93-97).
Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini

Informações: dorvalinofassini@gmail.com