segunda-feira, 24 de outubro de 2016

MORTE UM NADA OU UM TUDO?


1. Uma espiritualidade do medo e do vazio

Alguns séculos passados, houve uma espiritualidade que cultivava a “ascese da morte”. A intenção era lembrar que um dia seríamos colocados diante de Deus para sermos julgados por Ele, com a possibilidade até de sermos condenados ao inferno. Muitos, até mesmo santos, guardavam em suas celas caveiras ou caixões de defuntos. Por isso, também, quase todos os retiros e santas missões terminavam com um aterrorizante sermão sobre os últimos momentos de nossa vida.
Hoje, assistimos a uma atitude oposta: cultiva-se o esquecimento da morte. Falar ou pensar na morte, “Deus me livre!” Ora, tanto no primeiro como no segundo caso, há algo de errado ou, pelo menos, pouco evangélico.
Primeiramente há o erro de entender a morte como o ponto final, um “fim de linha” de nossa vida. Uma realidade distante, que só virá no último momento de nossa existência; uma realidade que nada tem a ver com o nosso “hoje”, com a vida ela mesma. Assim, viver é viver e morrer é morrer. Um excluiria radicalmente o outro. O primeiro será sempre visto como algo positivo, amado, querido, procurado, festejado e abençoado enquanto que o segundo detestado, rejeitado, e odiado. Enfim, o primeiro uma bênção, uma graça e o segundo uma destruição e por isso, uma maldição, uma desgraça.
O segundo defeito está no fato de prender a pessoa à própria “vidinha”. Não há a busca de um grande tesouro. Esta ausência leva o fiel a colocar o sentido da vida não em sua fé, mas sim em suas motivações e preferências, como em seus trabalhos, orações, em comer bem, viajar, fazer férias, fazer caridades, etc. Enfim, tudo muito fútil, banal e passageiro. “Vaidade das vaidades” diria o Eclesiastes.
As consequências são muito funestas. A mais funesta de todas é a de viver mais por medo do que por amor e temor. Além do mais, como a morte é inevitável, quando começa a se manifestar, como no caso de acidentes, doenças graves ou na velhice, tornamo-nos chatos, azedos, resmungadores, cheios de mau humor, revoltados, etc.
Na raiz de todo este problema está a compreensão de que ser criatura, ser finito, limitado, seria um defeito e não uma graça. Esquecemos que o homem foi criado como a mais bela e e mais perfeita de todas as criaturas (Cf. Gênesis). Portanto, assumir, amar e cuidar de sua existência finita e limitada, mortal, eis sua honra, glória, grandeza, sua primeira vocação e missão.
Portanto, porque nasceu um dia, o homem tem que aprender a nascer todos os dias. Porque morrerá um dia tem que aprender a morrer todos os dias. E, assim, a cada dia, o homem tem que nascer e morrer. Tem que nascer, morrendo. Tem que morrer, nascendo. Finitude, mortalidade, diz, pois o vigor que busca plenitude e não carência. Ora, não foi assim que viveu Cristo, cuidando com todo amor e alegria da finitude, da mortalidade do seu humano e do humano dos demais contemporâneos, principalmente dos doentes e pecadores chegando a proclamar alto e bom som na Cruz: “Consumatum est!” (“Tudo está consumado”)?!

  2. A morte experiência do encontro
Lendo o Evangelho, percebemos que Cristo não entende a vida como uma sucessão de momentos entre os quais o último seria o da desgraça da morte. Para Ele a vida é um contínuo processo de nascer sempre de novo na alegria e no júbilo da graça do encontro pessoal com seu Pai presente no encontro consigo mesmo, com seus irmãos, etc. Neste caso, o viver de Cristo não foi outra coisa senão um contínuo nascer ou crescer no Pai, como o viver de São Francisco foi um contínuo nascer e crescer em Jesus Cristo.
 Neste processo, a morte, em vez de algo catastrófico, destrutivo, tem sentido positivo de passagem, transformação, conversão para dentro de uma vida cada vez nova ou renovada. Isto podemos ver, por exemplo, quando, assaltados por uma doença, animados pela fé somos levados do desânimo para a coragem, o amor, o cuidado daquela doença bem como para assumir ainda mais e melhor nossos compromissos inerentes à nossa vida. É evidente, então, que o encontro da “morte-doença” se transformou em encontro com a graça de uma nova vida. Nascemos de novo.
Neste sentido, a morte como “último momento” ou “ponto final” não existe, ou melhor, existe sim, mas em vez de ser o fim será a consumação de todos os encontros de toda a nossa vida:  um Encontro pleno, intenso, íntimo, libertador, face a face com Deus, Jesus Cristo, São Francisco e todos os santos.
Infelizmente, influenciados por aquela espiritualidade do medo da morte se passou a compreender a alegria e a graça deste encontro como Juízo, julgamento. Juízo terrível e horrorizante, no qual Deus apareceria mais como carrasco do que como o rosto misericordioso de um Pai que vive esperando de braços abertos o filho que retorna definitivamente para sua Casa; um encontro no qual Jesus Cristo em vez de um irmão acolhedor e salvador, que dá a sua vida, morrendo na Cruz por mim, é visto como juiz que me acusa, envergonha diante do Pai.
O impressionante é que na Boa Nova, no Evangelho, não encontramos nenhuma imagem de um Juízo assim. Pois, tudo o que a Sagrada Escritura fala acerca do Juízo em vez de referir-se à escatologia refere-se, antes, à importância da decisão e do compromisso para com o grande e único mandamento: Amar a Deus e aos irmãos. Jesus, ao falar do Juízo final não está acentuando o julgamento, mas a importância de decidir-nos cada dia, cada instante, cada vez mais, melhor e de novo  a amar o Pai e os irmãos como Ele ama.  E quando a Sagrada Escritura fala da Escatologia nos mostra a imagem do “Senhor Jesus” naquele tom saudoso e ‘amoroso’ da esposa do Apocalipse que sussurra: “Vem, meu Senhor Jesus”. Por isso, partindo da Boa Nova de Cristo seria muito mais correto entender o Juízo não como julgamento, mas como expressão daquela paixão inebriante do livro do Cântico dos Cânticos, onde se realiza o Encontro mais íntimo que podemos imaginar na esfera humana: “O meu amado é todo meu, e eu sou dele” (Ct 2,16).
Portanto, se considero a minha vida como resposta ao chamado de Jesus para acolhê-lo em cada momento ou situação, então posso compreender que a morte não é outra coisa senão o auge, o apogeu da intensificação do Encontro face a face com o “Meu Deus e tudo” em cada momento de minha vida. Sendo assim, a morte, antes de um ponto final, é uma companheira inseparável, uma sombra da vida, uma graça que está se realizando em cada momento de minha vida.
Na experiência cristã e franciscana a finitude não é desgraçada, mas agraciada porque nela, com ela e por ela se dá, sempre de novo, a chance, a oportunidade, o “kairós” do encontro com o Pai. Este encontro é o tesouro escondido, a pérola preciosa pelos quais vale à pena vender tudo para possuí-los. Tesouro, pérola que nos fazem felizes, joviais e cordiais conosco mesmos, com tudo e com todos.
Dentro desta visão, “la vita é bella!”, diria Roberto Benigni, diretor do belo e dramático filme do mesmo nome. Neste sentido, então, começamos a compreender que a nossa vida não é um lugar onde eu luto para não cair no inferno e ir para o céu, mas muito mais, lugar onde eu treino e intensifico a força do meu coração para, quando chegar o último Encontro poder amar a esse Deus que me amou por primeiro; poder, enfim, amá-Lo de todo o coração, de toda a alma e com todas as minhas forças.
Dentro desta visão, tudo se torna importante. Assim, se, por acaso, eu estivesse lavando louça ou tomando uma gostosa cerveja e chegasse um anjo e me dissesse que dentro de meia hora eu iria morrer jamais deixaria de lavar a louça, de continuar tomando calmamente a cerveja a fim de recolher-me em meu quarto ou na capela para me preparar para a morte. Pois a melhor preparação para a morte, nestes casos, é continuar fazendo o que se está fazendo da melhor maneira possível com a intensidade de atenção e de amor para bem acolher o Senhor que está na louça que devo lavar e na cerveja que estou tomando. Não diz o Senhor no Evangelho acerca deste dia, isto é, do encontro diário com o Senhor: “se alguém vos disser: ‘o Cristo está aqui’ ou ‘acolá’, não acrediteis”. Por que? Porque ele é como um relâmpago que surge a toda a hora no oriente de nossa vida e brilha até o seu ocidente, seu ocaso. Assim será a vinda do Filho do homem.
Como estamos longe de Francisco que convidava a morte a ser sua irmã e sua hóspede diária: “Bem-vinda, minha irmã morte!” (2C 217).
Todos os cristãos, em qualquer lugar e situação que se encontrem,
estão convidados a renovar hoje mesmo
seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos,
a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele,
de procurá-lo dia a dia, sem cessar
(Papa Francisco na EG 3).


Para pensar:
- Em quais compreensões de morte, vistas acima, eu me coloco?
- O que devo fazer para, a exemplo de Cristo e Francisco, ver e viver a vida na morte e a morte na vida?