Fraternidade N. Sª dos Anjos da Porciúncula
Blog da Fraternidade Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula da Ordem Franciscana Secular - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil
segunda-feira, 17 de abril de 2023
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
MORTE UM NADA OU UM TUDO?
1. Uma
espiritualidade do medo e do vazio
Alguns séculos passados, houve uma
espiritualidade que cultivava a “ascese da morte”. A intenção
era lembrar que um dia seríamos colocados diante de Deus para sermos
julgados por Ele, com a possibilidade até de sermos condenados ao
inferno. Muitos, até mesmo santos, guardavam em suas celas caveiras
ou caixões de defuntos. Por isso, também, quase todos os retiros e
santas missões terminavam com um aterrorizante sermão sobre os
últimos momentos de nossa vida.
Hoje, assistimos a uma atitude oposta:
cultiva-se o esquecimento da morte. Falar ou pensar na morte, “Deus
me livre!” Ora, tanto no primeiro como no segundo caso, há algo de
errado ou, pelo menos, pouco evangélico.
Primeiramente há o erro de entender a morte
como o ponto final, um “fim de linha” de nossa vida. Uma
realidade distante, que só virá no último momento de nossa
existência; uma realidade que nada tem a ver com o nosso “hoje”,
com a vida ela mesma. Assim, viver é viver e morrer é morrer. Um
excluiria radicalmente o outro. O primeiro será sempre visto como
algo positivo, amado, querido, procurado, festejado e abençoado
enquanto que o segundo detestado, rejeitado, e odiado. Enfim, o
primeiro uma bênção, uma graça e o segundo uma destruição e por
isso, uma maldição, uma desgraça.
O segundo defeito está no fato de prender a
pessoa à própria “vidinha”. Não há a
busca de um grande tesouro. Esta ausência leva o fiel a colocar o
sentido da vida não em sua fé, mas sim em suas motivações e
preferências, como em seus trabalhos, orações, em comer bem,
viajar, fazer férias, fazer caridades, etc. Enfim, tudo muito fútil,
banal e passageiro. “Vaidade das vaidades” diria o Eclesiastes.
As consequências são muito funestas. A mais
funesta de todas é a de viver mais por medo do que por amor e temor.
Além do mais, como a morte é inevitável, quando começa a se
manifestar, como no caso de acidentes, doenças graves ou na velhice,
tornamo-nos chatos, azedos, resmungadores, cheios de mau humor,
revoltados, etc.
Na raiz de todo este problema está a
compreensão de que ser criatura, ser finito, limitado, seria um
defeito e não uma graça. Esquecemos que o homem foi criado como a
mais bela e e mais perfeita de todas as criaturas (Cf. Gênesis).
Portanto, assumir, amar e cuidar de sua existência finita e
limitada, mortal, eis sua honra, glória, grandeza, sua primeira
vocação e missão.
Portanto, porque nasceu um dia, o homem tem que
aprender a nascer todos os dias. Porque morrerá um dia tem que
aprender a morrer todos os dias. E, assim, a cada dia, o homem tem
que nascer e morrer. Tem que nascer, morrendo. Tem que morrer,
nascendo. Finitude, mortalidade, diz, pois o vigor que busca
plenitude e não carência. Ora, não foi assim que viveu Cristo,
cuidando com todo amor e alegria da finitude, da mortalidade do seu
humano e do humano dos demais contemporâneos, principalmente dos
doentes e pecadores chegando a proclamar alto e bom som na Cruz:
“Consumatum est!”
(“Tudo está consumado”)?!
2. A morte
experiência do encontro
Lendo o Evangelho, percebemos que Cristo não
entende a vida como uma sucessão de momentos entre os quais o último
seria o da desgraça da morte. Para Ele a vida é um contínuo
processo de nascer sempre de novo na alegria e no júbilo da graça
do encontro pessoal com seu Pai presente no encontro consigo mesmo,
com seus irmãos, etc. Neste caso, o
viver de Cristo não foi outra coisa senão um contínuo nascer ou
crescer no Pai, como o viver de São Francisco foi um contínuo
nascer e crescer em Jesus Cristo.
Neste processo, a morte, em vez de algo
catastrófico, destrutivo, tem sentido positivo de passagem,
transformação, conversão para dentro de uma vida cada vez nova ou
renovada. Isto podemos ver, por exemplo, quando, assaltados por uma
doença, animados pela fé somos levados do desânimo para a coragem,
o amor, o cuidado daquela doença bem como para assumir ainda mais e
melhor nossos compromissos inerentes à nossa vida. É evidente,
então, que o encontro da “morte-doença” se transformou em
encontro com a graça de uma nova vida. Nascemos de novo.
Neste sentido, a morte como “último momento”
ou “ponto final” não existe, ou melhor, existe sim, mas em vez
de ser o fim será a consumação de todos os encontros de toda a
nossa vida: um Encontro pleno, intenso, íntimo, libertador,
face a face com Deus, Jesus Cristo, São Francisco e todos os santos.
Infelizmente, influenciados por aquela
espiritualidade do medo da morte se passou a compreender a alegria e
a graça deste encontro como Juízo, julgamento. Juízo terrível e
horrorizante, no qual Deus apareceria mais como carrasco do que como
o rosto misericordioso de um Pai que vive esperando de braços
abertos o filho que retorna definitivamente para sua Casa; um
encontro no qual Jesus Cristo em vez de um irmão acolhedor e
salvador, que dá a sua vida, morrendo na Cruz por mim, é visto como
juiz que me acusa, envergonha diante do Pai.
O impressionante é que na Boa Nova, no
Evangelho, não encontramos nenhuma imagem de um Juízo assim. Pois,
tudo o que a Sagrada Escritura fala acerca do Juízo em vez de
referir-se à escatologia refere-se, antes, à importância da
decisão e do compromisso para com o grande e único mandamento: Amar
a Deus e aos irmãos. Jesus, ao falar do Juízo final não está
acentuando o julgamento, mas a importância de decidir-nos cada dia,
cada instante, cada vez mais, melhor e de novo a amar o Pai e
os irmãos como Ele ama. E quando a Sagrada Escritura fala da
Escatologia nos mostra a imagem do “Senhor Jesus” naquele tom
saudoso e ‘amoroso’ da esposa do Apocalipse que sussurra: “Vem,
meu Senhor Jesus”. Por isso, partindo da Boa Nova de Cristo seria
muito mais correto entender o Juízo não como julgamento, mas como
expressão daquela paixão inebriante do livro do Cântico dos
Cânticos, onde se realiza o Encontro mais íntimo que podemos
imaginar na esfera humana: “O meu amado é todo meu, e eu sou dele”
(Ct 2,16).
Portanto, se considero a minha vida como resposta ao chamado de Jesus
para acolhê-lo em cada momento ou situação, então posso
compreender que a morte não é outra coisa senão o auge, o apogeu
da intensificação do Encontro face a face com o “Meu Deus e tudo”
em cada momento de minha vida. Sendo assim, a morte, antes de um
ponto final, é uma companheira inseparável, uma sombra da vida, uma
graça que está se realizando em cada momento de minha vida.
Na experiência cristã e franciscana a
finitude não é desgraçada, mas agraciada porque nela, com ela e
por ela se dá, sempre de novo, a chance, a oportunidade, o “kairós”
do encontro com o Pai. Este encontro é o tesouro escondido, a pérola
preciosa pelos quais vale à pena vender tudo para possuí-los.
Tesouro, pérola que nos fazem felizes, joviais e cordiais conosco
mesmos, com tudo e com todos.
Dentro desta visão, “la vita é bella!”, diria Roberto Benigni,
diretor do belo e dramático filme do mesmo nome. Neste sentido,
então, começamos a compreender que a nossa vida não é um lugar
onde eu luto para não cair no inferno e ir para o céu, mas muito
mais, lugar onde eu treino e intensifico a força do meu coração
para, quando chegar o último Encontro poder amar a esse Deus que me
amou por primeiro; poder, enfim, amá-Lo de todo o coração, de toda
a alma e com todas as minhas forças.
Dentro desta visão, tudo se torna importante. Assim, se, por acaso,
eu estivesse lavando louça ou tomando uma gostosa cerveja e chegasse
um anjo e me dissesse que dentro de meia hora eu iria morrer jamais
deixaria de lavar a louça, de continuar tomando calmamente a cerveja
a fim de recolher-me em meu quarto ou na capela para me preparar para
a morte. Pois a melhor preparação para a morte, nestes casos, é
continuar fazendo o que se está fazendo da melhor maneira possível
com a intensidade de atenção e de amor para bem acolher o Senhor
que está na louça que devo lavar e na cerveja que estou tomando.
Não diz o Senhor no Evangelho acerca deste dia, isto é, do encontro
diário com o Senhor: “se alguém vos disser: ‘o Cristo está
aqui’ ou ‘acolá’, não acrediteis”. Por que? Porque ele é
como um relâmpago que surge a toda a hora no oriente de nossa vida e
brilha até o seu ocidente, seu ocaso. Assim será a vinda do Filho
do homem.
Como estamos longe de Francisco que convidava a morte a ser sua irmã
e sua hóspede diária: “Bem-vinda, minha irmã morte!” (2C 217).
Todos os cristãos, em qualquer lugar e situação que se
encontrem,
estão convidados a renovar hoje mesmo
seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos,
a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele,
de procurá-lo dia a dia, sem cessar
(Papa Francisco na EG 3).
Para pensar:
- Em quais compreensões de morte, vistas acima, eu me coloco?
- O que devo fazer para, a exemplo de Cristo e Francisco, ver e viver
a vida na morte e a morte na vida?
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