domingo, 22 de março de 2015

São Francisco reencontrado

Frei Dorvalino Fassini, OFM

Ein Franziskus-Bild des kath. Friedensaktivisten,
Peter Bürger, aus Düsseldorf
Quando se pensava que a relação dos livros que compõem as atuais Fontes Franciscanas estivesse completa, eis que surge uma nova descoberta.

Segundo Sílvia Guidi, no artigo “São Francisco reencontrado”, no Osservatore Romano de 29 de janeiro de 2015, está sendo preparada a edição latina, bem como traduções em italiano, francês e inglês de uma nova “Vita” de São Francisco”. Trata-se de uma biografia escrita por Tomás de Celano entre os anos de 1232-1239. Nesse caso, temos agora desse mesmo biógrafo uma nova “Vida” entre a “Primeira”, escrita em 1227 e a “Segunda” em 1247.

O autor da descoberta é o medievista Jacques Dalarun. O mencionado artigo não esclarece, porém, como foi encontrado esse manuscrito. Em todo caso, segundo ele, a reflexão do próprio Tomás de Celano, depois da Primeira Vida, tornou-se mais profunda, sobretudo acerca da pobreza e do amor de Francisco pelas criaturas. Diz ele: Num certo sentido poder-se-ia dizer que o biógrafo com o passar dos anos, entende... que nada entendeu da mensagem de Francisco.

Em relação à pobreza, a nova Vita fala em “experiri paupetatem”, no sentido de experienciar no próprio corpo a pobreza de Cristo. Quanto à fraternidade universal, diz Jacques que Francisco não amava apenas os seres humanos, mas também os seres privados de razão e justifica: somos diversos mas irmãos porque todos descendem da paternidade do criador... Por isso, dizer que Francisco amava a natureza é um conceito pagão. Francisco amava os homens e os animais porque são filhos do mesmo Criador.

Outra novidade da nova Vita diz respeito à viagem de Francisco a Roma que, em vez de peregrino, segundo a Legenda dos Três Companheiros, teria sido em forma de comerciante, antes, portanto, de iniciar o processo de conversão.

Diz ainda Dalarun que o mistério está só no início. Quem tinha esse livro no bolso? Para quem foi feito? ... Quem poderia conhecer estes textos? Frei Leão...? E conclui que, em todo o caso, é um bom patrocínio por parte do primeiro Francisco para o atual Papa que precisamente agora está a preparar uma encíclica sobre o amor pela criação.

Concluímos: Quando se estuda São Francisco e, por isso, julga-se tê-lo entendido está enganado e enganando. Para conhecê-lo seria necessário uma nova graça divina que nos convertesse como a ele em “outro Cristo, pobre e crucificado”.

Em louvor de Cristo Amém!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Quaresma para quê?

Frei Dorvalino Fassini, OFM


Iniciamos há poucos dias mais uma Quaresma. Tempo litúrgico que faz a memória dos quarenta dias de jejum, tentações e provações de Cristo no deserto. Mais que sua dimensão cronológica, Quaresma é, antes, o prelúdio, o princípio, o resumo de toda uma vida: a Dele, Cristo e de toda a Humanidade, de cada um de nós, enfim. 
No centro desse percurso está o fogo da paixão que Lhe incendiara o coração por ocasião da teofania durante seu Batismo no rio Jordão: Os céus se abriram, e Ele viu o Espírito de Deus descer em forma de pomba e pousar sobre Ele. E do céu veio uma voz que dizia: “Este é meu Filho muito amado, no qual ponho todo meu bem-querer (Mt 4,16-17). Testemunho que se repete mais adiante na teofania do Tabor. 
Ser declarado Filho de Deus, porém, não era fato mas convocação para vir-a-ser, um presente que devia ser amado com paixão e um futuro que devia ser abraçado com esperança mediante o percurso do caminho das limitações e fragilidades do humano. Aí estava, em resumo, o novo Céu e o novo Homem que, em nome de seu Pai, devia inaugurar em Si e, a partir de Si, para toda a humanidade.
 Esboçava-se, assim, sua batalha, sua grande aventura e angustiante busca: jamais sucumbir à tentação de ser e viver como filho de Deus, uma vez que Ele era, de fato, o Filho Unigênito do Pai. Mas, como esquecer-se de sua própria identidade? Como aniquilar a toda a hora seu EU mais profundo de Segunda Pessoa da Santíssima Trindade? Enfim, como não vangloriar-se de sua condição divina, ou, como, diríamos hoje, não usar dessa sua grandeza e poder em favor de Si e de sua missão, em favor e benefício de seus semelhantes tão necessitados e carentes de libertação? Não seria fugir do grande mandamento do Amor, da justiça e da paz? Eis sua grande, primeira e última tentação.
No entanto foi assim que viveu sua passagem entre nós: como filho do Homem.  Um filho do Homem tão apaixonado pelo nosso humano frágil e pecador que jamais quis desvencilhar-se dele. Uma loucura para os mundanos e gentios e opróbio, vergonha para os “religiosos”, os “puros”, os “justos“ e “santos”  judeus de ontem e de hoje (Cf. 1Cor 1,23). 
Por isso, O vemos toda hora afastar-se daqueles que o querem como “deus” e mandando para longe aqueles que, a exemplo de Pedro, O desejam como “rei”. Por isso, também, ama, deseja ardentemente “subir” para Jerusalém, porque lá estão seus maiores e melhores “amigos”: Judas, os sumos sacerdotes, as autoridades civis e a própria populaça, aqueles enfim que o ajudarão a concretizar sua paixão pela sua (nossa) “criaturidade” (ser criatura). 
Essa era, pois, sua missão: inaugurar o novo e definitivo caminho do Homem que Adão abandonara; dar uma nova origem (“genes”) ao homem: a paixão pela grandeza de sermos “simplesmente” criaturas e não “deuses”, filhos de um Pai que tem inveja dessa nossa condição e tanta que quis também Ele, vive-la através de seu Filho unigênito. Assim, não temos mais um Deus-Deus, mas um Deus-homem, humanado.
Segundo Marcos, só no fim, isto é, após ter bebido, saboreado a última gota do cálice de seu humano é que houve o reconhecimento do oficial romano: este homem é verdadeiramente filho de Deus (Mc 15,39). 
A encarnação, porém, proporciona a Cristo ser não apenas mais um  homem entre os milhões e milhões, mas o Homem de todos os homens. Por isso, a partir de então o homem que queira ser verdadeiramente homem tem que ser mais que homem. Ser mais que homem significa trabalhar apaixonadamente seu humano até que brilhe e venha para fora a pérola escondia e preciosa: a semente da filiação divina inaugurada por Cristo. Enfim, o sentido de nossa vida não é nenhum outro senão o trabalho, a aventura, a tarefa de dia após dia, buscar “ser quase Deus”, sendo cada vez e sempre mais homem.
Quem maravilhosamente compreendeu e encetou esse caminho foi São Francisco que, a partir do encontro com o Crucificado na igrejinha de São Damião, jamais deixou de conformar-se com Ele. Por isso, também ele tornou-se o homem mais humano e o mais angelical ou divino de todos os homens, o homem que todos os homens desejam ser, ou, quem sabe, o primeiro e último homem, o primeiro e último cristão, o segundo mais belo dentre os filhos dos homens. Isso porque, ele, como ninguém, depois do próprio Mestre e de Maria, aprendeu a chorar a Paixão do seu Senhor (LTC 14) e a fazer da sua Cruz a “Perfeita Alegria” (Cf. I Fioretti, capítulo 8º).
Em seu ardente desejo de conformar-se ao seu amado e doce Jesus e a fim de não desviar-se jamais desse seu propósito fez de toda a sua vida uma grande Quaresma. Por isso, além da Quaresma que vai de Quarta-feira das Cinzas até a Páscoa, inventou outras quatro que as celebrava com o mesmo fervor:
  • a do Advento;   
  • a da Epifania ou “bendita”;
  • a de São Miguel, e
  • a Quaresma que ia da Festa dos Apóstolos Pedro e Paulo até a Assunção.

Assim, para Francisco, Quaresma vai além da dimensão meramente cronológica. É o Tempo de todos os tempos porque nela fulgura a busca maior de cada um de nós e de cada homem que vem a este mundo: a glória da Cruz, do Crucificado, Daquele que não cabendo no Universo inteiro quis caber num simples e pobrezinho coxinho e, finalmente, nos braços de um madeiro, porque “aí” é Seu e nosso lugar.
Diante de uma Campanha da Fraternidade que deseja servir a Alegria do Evangelho à Sociedade, de uma sociedade que busca a todo custo, inclusive o custo de seu próprio humano, a fim de ser feliz, realizada, que busca nós, seguidores de Cristo, estamos lhe oferecendo?  É realmente a do Cristo crucificado, o mais belo dos filhos dos homens? (Sl 45,3) Em nossas celebrações e pregações como brilha esse mistério originário da nova Humanidade? Porque, por exemplo, a “usamos” tão pouco em nossas procissões de entrada na Missa, ela que é nosso símbolo maior? Até que ponto elas evocam em nós as lágrimas do Apóstolo porque, a exemplo dos antigos filipenses, nos comportamos como inimigos da Cruz de Cristo? (Cf. Fl 3,18). Porque em nossas missas lembramos muito a dimensão “festiva” e tão pouco a sacrifical? Não esquecemos que o maior e o mais conhecido de todos os sermões que Jesus fez é o da Sexta feira Santa? Um sermão sem palavras, do mais puro e eloquente silêncio? Não seria essa a razão de tanta fé e devoção por esse dia sagrado do nosso povo simples e fiel?  Veja-se, por exemplo, quanta importância os homens do mundo dão aos seus símbolos, suas marcas, suas bandeiras! Por que, então, não prevalecer-se mais e melhor esse símbolo vitorioso? E o que fazemos nós de nossa tão bela e expressiva oração de São Francisco Nós vos adoramos...”? Ou, não cremos mais que no coração de cada homem vigoram centelhas desse Mistério?  
Finalizando, segundo nosso atual papa, quando caminhamos sem a Cruz, edificamos sem a Cruz ou confessamos um Cristo sem Cruz, não somos discípulos do Senhor: somos mundanos, somos bispos, padres, cardeais, papas, mas não discípulos do Senhor (Carta “Alegrai-vos”, da Sagrada Congregação dos Consagrados, Paulinas, pag. 26).   
A todos uma santa e abençoada Quaresma!